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EMI terá de ressarcir João Gilberto por remasterizar discos sem autorização

O cantor e compositor João Gilberto, ícone da Bossa Nova, receberá indenização por violação ao direito moral do autor, em razão do CD intitulado “O Mito”, lançado pela EMI sem a autorização do músico. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) baseou-se em provas periciais constantes dos autos, e reconhecidas pela Justiça estadual, para entender que as canções originais de três discos gravados em vinil sofreram modificação substancial de apresentação após terem sido remasterizadas.

A Terceira Turma, por maioria, seguiu o voto do relator, ministro Sidnei Beneti, que atendeu em parte o recurso de João Gilberto interposto contra a EMI e uma empresa comercializadora de CDs. As instâncias ordinárias da Justiça já haviam reconhecido o direito do músico ao ressarcimento dos danos materiais – royalties de 18% sobre as vendas dos CDs referidos.

Com a decisão da Terceira Turma de reconhecer a violação ao direito moral, esse percentual será acrescido de um terço. Ficou mantido, também, o pagamento dos valores recebidos pela gravadora pelo uso de obra de João Gilberto em campanha publicitária sem a sua autorização. Os valores serão fixados em liquidação de sentença.

O ministro Beneti observou que, quando reproduzidas as obras no CD, não havia mais contrato vigente entre o autor e a gravadora, e não houve autorização para uso das obras antes cedidas. “Os direitos morais do autor se comparam ao direito de paternidade da obra, criando-se vínculo indissolúvel entre ela e o criador”, afirmou.

Perícia técnica

A remasterização constitui um processo eletrônico para conferir perfeição ao áudio. Os novos equipamentos podem fazer correção, alteração e complementação na música tratada. O efeito, em princípio, é de simples reedição e, em geral, não causa violação da obra. No entanto, a modificação pode ocorrer no processo.

O ministro Beneti, em um extenso e detalhado voto, afirmou ser direito moral do autor, inalienável e passível de indenização, recusar modificações em sua obra independentemente de esta vir a receber láureas. A EMI alegava que o dano não teria ocorrido porque o CD “O Mito” recebeu premiações internacionais, o que atestaria sua qualidade.

No entanto, laudo do perito que atuou no processo, o músico Paulo Jobim, filho do maestro Antônio Carlos Jobim, detectou que, em razão da remasterização, “a obra perdeu transparência nas frequências médias e as reverberações agudas se tornam muito evidentes, atrapalhando a audição”. O Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) reconheceu a ocorrência das mudanças na obra, mas não a caracterização do dano em decorrência delas.

A partir disso, o ministro Beneti concluiu que não houve dano moral comum, mas houve ofensa ao direito moral do autor. Para ele, não importa que a obra tenha excelência aos olhos de muitos, inclusive de parte da crítica especializada. “Houve alteração da obra e ofensa à sua identidade”, observou. Se a reprodução foi diferente, o ser reproduzido não foi idêntico nos discos originais e no remasterizado, afirmou o ministro.

O ministro Massami Uyeda foi o único a discordar. Para ele, embora haja nos autos prova pericial que comprove a alteração na qualidade musical, apenas quem é expert capta a mudança. A população não é suscetível às falhas, daí porque não haveria dano a ser reparado. A ministra Nancy Andrighi e os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Villas Bôas Cueva acompanharam o relator.

Em outro ponto reivindicado por João Gilberto, a Turma concluiu que seria inviável recolher os exemplares de CDs já produzidos e comercializados com ofensa ao direito de autor, porque esses teriam sido objeto de ampla circulação. Igualmente, não foi reconhecida a responsabilidade solidária da empresa que comercializou os CDs com violação ao direito do autor, por falta de indicação suficiente de fatos e fundamentos jurídicos contra ela.

Histórico

O recurso foi movido por João Gilberto contra a EMI Music Ltda. e a loja Gramophone Discos, Vídeo e Computador Ltda. por utilização e comercialização indevida, respectivamente, de parte da sua obra.

Inicialmente, João Gilberto ajuizou uma ação ordinária porque, a partir do ano de 1988, a EMI lançou CDs com a obra do músico sem sua autorização. Essa obra se compõe de três LPs e um compacto de vinil gravados entre os anos de 1958 e 1962, período em que o músico manteve contratos de locação de serviços com a empresa.

Em 1963, o artista notificou a EMI de que não haveria renovação do contrato, e a empresa manifestou-se informando que o contrato tinha vigência até 1964. Apesar da comunicação, a gravadora continuou a lançar suas obras e realizar os pagamentos até o ano de 1988, data em que houve a rescisão do ajuste de forma verbal e bilateral.

A defesa do músico alegou, ainda, que a empresa, de forma indevida, autorizou a utilização da obra musical “Coisa Mais Linda” em uma propaganda comercial.

O juízo de primeiro grau julgou a ação improcedente em relação à Gramophone, mera comercializadora, e parcialmente procedente em relação à EMI, condenando-a ao pagamento dos valores recebidos com a utilização da obra musical em uma propaganda, bem como royalties (compensação ou parte do lucro pago ao detentor de um direito qualquer) de 18% sobre as vendas dos CDs.

As partes apelaram ao TJRJ, que negou provimento aos recursos e manteve a sentença de primeiro grau. Apenas o autor recorreu ao STJ.