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Quando se perde o “direito de dirigir”

Assim como, na legislação de trânsito, existem regras específicas para que seja permitida a alguém a condução de veículos automotores, da mesma forma são prescritas situações nas quais o condutor passa a ser proibido de fazê-lo. O Código de Trânsito Brasileiro atual (Lei n. 9.503/97) prescreve duas situações diferenciadas de que tratarei no presente artigo: SUSPENSÃO do direito de dirigir e CASSAÇÃO do documento de habilitação (Carteira Nacional de Habilitação e Permissão para Dirigir), penalidades que, com frequência, são confundidas por aqueles que não estão afetos a essa área do Direito.

Deixarei de lado, neste trabalho, a penalidade de natureza criminal, prevista no artigo 292 do CTB, de “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, que (controvérsias à parte, quanto à sua legitimidade) é de competência de imposição da autoridade judiciária, como pena isolada ou cumulativa, ao final do processo judicial ou, como medida cautelar, nos termos dos artigos 293 a 296 do CTB.O enfoque, portanto, será em relação às três penalidades administrativas, a serem aplicadas exclusivamente pela autoridade de trânsito e constantes dos incisos III, V e VI do artigo 256 do CTB, respectivamente: “suspensão do direito de dirigir”, “cassação da Carteira Nacional de Habilitação” e “cassação da Permissão para Dirigir”, cuja imposição exige o cumprimento do artigo 265: As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa. Aliás, o termo “suspensão do direito de dirigir”, além de equivocado, como se verá a seguir, consta do atual Código de Trânsito por mera herança do texto anterior, utilizado no artigo 96 da Lei n. 5.108/66 (Código Nacional de Trânsito), ao se referir à antiga penalidade de apreensão do documento de habilitação: Nos casos de apreensão do documento de habilitação, a suspensão do direito de dirigir dar-se-á por prazo de um a doze meses.

Ou seja, o Código atual denominou de penalidade o que, até 1997, constituía apenas efeito da pena administrativa. Em contrapartida, a “apreensão do documento de habilitação” deixou de ser penalidade de trânsito (artigo 95, c, da Lei n. 5.108/66), para, com o nome de “recolhimento do documento de habilitação”, figurar como medida administrativa, prevista no artigo 269, incisos III (CNH) e IV (PPD), do atual CTB.

Comparando-se, assim, a legislação anterior e a atual, podemos dizer, resumidamente, que, antes, o órgão de trânsito aplicava a penalidade de apreensão do documento de habilitação, cujo EFEITO era o de suspender o direito de dirigir, enquanto que, hoje, o órgão de trânsito suspende tal “direito” e, para tornar a suspensão efetiva, RECOLHE o documento de habilitação.

Esta sequência lógica, que coloca o recolhimento do documento como decorrente da imposição da pena administrativa e, portanto, em momento posterior (e não o contrário) é de crucial importância, pois tem sido comum que agentes de trânsito, quando da constatação de infrações de trânsito nas quais estejam previstas a penalidade de “suspensão do direito de dirigir” e a medida administrativa de “recolhimento do documento de habilitação” (como, por exemplo, “prática de racha”, “embriaguez ao volante” ou conduzir motocicleta sem capacete), procedam, de imediato, ao recolhimento do documento de habilitação, o que é, no meu entender, completamente equivocado.

Apesar de as medidas administrativas serem de competência da autoridade de trânsito OU de seus agentes (caput do artigo 269 do CTB), o recolhimento do documento de habilitação, no ato da fiscalização de trânsito, além de retirar, do condutor, um documento de identidade (talvez o único que ele porta, naquele momento), antecipa, indevidamente, a proibição de conduzir veículos automotores, posto que a CNH (ou PPD), no original, constitui documento de porte obrigatório, de acordo com o artigo 159, §§ 1º e 5º, do CTB e artigo 1º da Resolução do CONTRAN n. 205/06.

Mesmo que esse “período provisório” em que o condutor permaneceu sem o seu documento de habilitação seja descontado da suspensão posteriormente aplicada (o que alguns órgãos de trânsito têm feito, sem nenhuma previsão legal expressa), o problema é que terá sido aplicada a penalidade ANTES do processo administrativo exigido pela lei. Situação ainda pior ocorre quando o auto de infração é cancelado, por ser considerado inconsistente ou irregular (artigo 281, parágrafo único, I, do CTB) , impossibilitando, consequentemente, a imposição da penalidade de “suspensão do direito de dirigir”, por não constar a pontuação do prontuário do motorista (e aí, neste caso, a suspensão “cautelar” não terá nenhum sentido).

O problema apontado é mais frequente do que se imagina: com o aumento da fiscalização de trânsito relativa à “embriaguez ao volante” (desde a publicação da Lei n. 11.705/08, a chamada “lei seca”) este procedimento ora questionado tem sido comum, em todo o Brasil. Já ouvi, inclusive, argumentos de profissionais do trânsito, no sentido de que não se trata de antecipação da suspensão, mas o documento de habilitação é recolhido, para ficar à disposição do condutor no órgão de trânsito, onde é, então, instaurado o processo administrativo.

Todavia, com todo o respeito a quem pensa diferente, não vejo razão lógica (muito menos base legal) para essa prática, tendo em vista que:

I) a instauração do processo administrativo independe da presença do condutor, que deve ser, oportunamente, notificado da INSTAURAÇÃO e, ao final da decisão, notificado novamente para que ENTREGUE a CNH (artigos 10 e 17 da Resolução do CONTRAN n. 182/05);

II) o processo administrativo de “suspensão do direito de dirigir” somente pode ser instaurado após esgotados todos os recursos contra a infração (artigo 8º da Resolução do CONTRAN n. 182/05); III) a submissão do condutor a uma prática não prevista em lei caracteriza constrangimento ilegal;

IV) o ato lesivo ao patrimônio de alguém (que se vê impedido de exercer os direitos decorrentes da licença que lhe foi concedida pelo Estado) caracteriza abuso de autoridade (artigo 4º, h, da Lei n. 4.898/65);

V) ainda que não seja este o objetivo, a retirada do documento de habilitação impossibilita que o condutor continue dirigindo, vedando-lhe o exercício da ampla defesa; e

VI) no caso específico da infração de “embriaguez ao volante” (art. 165 do CTB), dizer que se retira a CNH para que o ébrio não continue a conduzir o veículo é argumento falho, uma porque quem não se importa de dirigir sob influência de álcool já demonstra certa despreocupação se anda ou não corretamente (o que é uma infração leve, de não portar documento, diante de uma gravíssima, de dirigir embriagado?); outra porque o próprio dispositivo legal prevê outra saída para que não se perpetue a conduta irregular: deve ser aplicada a medida administrativa de retenção do veículo ATÉ a apresentação de condutor habilitado e, caso isso não ocorra, o veículo deve ser removido ao pátio (§ 4º do artigo 270 do CTB).

Feitas tais considerações introdutórias, vejamos, daqui em diante, os aspectos jurídicos necessários para a compreensão adequada da atuação estatal, no controle dos requisitos para a condução de veículos (tanto na concessão, quanto na retirada de um documento permissivo), o que depende da constatação de sua natureza jurídica, conciliando-se os fundamentos do Direito administrativo (no que se refere ao exercício da função administrativa), com as regras determinadas pela legislação de trânsito brasileira.

A primeira observação a se fazer é que tanto a concessão quanto a retirada do documento de habilitação, por parte do Poder público, constituem ATOS ADMINISTRATIVOS e, assim, sob este prisma devem ser estudados, para a perfeita compreensão dos institutos.Ato administrativo, nos dizeres de Hely Lopes Meirelles, é toda manifestação unilateral de vontade da Administração pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria . Alguns autores preferem não utilizar a expressão “manifestação de vontade”, para que não se transmita a falsa idéia de que o Poder público possui vontade própria, independente do texto legal, já que, na verdade, os atos administrativos devem tão somente dar cumprimento ao que se encontra expressamente previsto na lei. Assim, destaco o conceito mais contemporâneo, de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo quem ato administrativo é a declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes, como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.

De uma forma bem simples, podemos dizer que os atos administrativos são providências adotadas pela Administração pública, com repercussão nos direitos das pessoas (como é o caso do que, didaticamente, estou denominando de concessão e retirada do documento de habilitação).

A fundamentação jurídica e conceitual que ora apresento é extremamente importante para o deslinde da questão, em especial para afastar a concepção de que existe um DIREITO DE DIRIGIR (como sugere o equivocado nome da penalidade, utilizado pelo CTB), tendo em vista que não se pode comparar o ato de dirigir, sujeito à aprovação estatal, com os direitos inalienáveis e próprios da existência humana, como o direito à vida, à liberdade e à igualdade. A rigor, trata-se aqui de um direito que pode surgir ou não, a depender da comprovação de que o interessado cumpriu todos os requisitos necessários para o seu exercício. A este respeito, aponta Cássio Mattos Honorato que, em alguns países, utiliza-se a palavra “privilégio”, em vez de “direito”, justamente para destacar a fragilidade da situação jurídica a que faz jus o condutor de veículo automotor.

Diferentemente, pois, dos direitos e garantias fundamentais (protegidos constitucionalmente, pelo artigo 5º da CF/88), o direito subjetivo de conduzir veículos automotores depende de uma permissão estatal, mercê do cumprimento, por parte do interessado, de determinados requisitos legais, desde os pressupostos iniciais constantes do artigo 140 do CTB (ser penalmente imputável; saber ler e escrever; possuir Carteira de identidade ou equivalente), até a comprovação de realização de todo o processo de formação de condutores, estabelecido no Capítulo XIV do CTB e complementado pela Resolução do CONTRAN n. 168/04.

Destarte, verificando-se a atuação estatal no processo de formação de condutores, concernente às competências atribuídas aos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, em especial ao DENATRAN e aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Estados e Distrito Federal (artigos 19, VII e 22, II, do CTB) , e considerando a doutrina jurídica sobre os atos administrativos, lícito concluir que a concessão do documento de habilitação nada mais é do que um ATO ADMINISTRATIVO NEGOCIAL (denominação utilizada por alguns autores de Direito administrativo, para se referirem aos atos que se originam da conciliação entre a ação estatal e os interesses particulares do indivíduo atingido), da espécie LICENÇA, modalidade de ato administrativo que, diferentemente da autorização, reveste-se de uma obrigatoriedade de emissão, pelo Estado, quando cumpridas todas as exigências legais.

É por este motivo que se condena, do ponto de vista acadêmico, a utilização da expressão “suspensão do direito de dirigir”, para se referir à uma decisão administrativa que, juridicamente, não suspende um direito, mas tem como objetivo o “cancelamento” de uma licença concedida anteriormente, da mesma maneira que ocorre, por exemplo, com a extinção de uma licença concedida para o funcionamento de uma banca de jornal, no município.

Assim, tanto a “suspensão do direito de dirigir”, quanto a “cassação do documento de habilitação” podem ser classificadas, doutrinariamente, como uma mesma espécie de extinção do ato administrativo, denominada, justamente, CASSAÇÃO, que pode ser conceituada como “a retirada de ato administrativo anterior, por ter o seu beneficiário descumprido condição indispensável para a sua manutenção”.

Desta forma, aplicando-se as lições de Direito administrativo ao contexto do trânsito, não é de todo errado atribuir o nome de CASSAÇÃO ao ato punitivo que, extinguindo a licença concedida, proíbe um condutor, definitiva ou temporariamente, de dirigir veículos automotores.

Não obstante a constatação apresentada, mas tendo em vista que o CTB faz distinções conceituais, passemos a apreciá-las, para completa assimilação das penalidades estudadas, sob o prisma da legislação de trânsito brasileira.Apresentarei, a seguir, as duas principais distinções entre a “suspensão do direito de dirigir” e a “cassação da Carteira Nacional de Habilitação”, deixando para tratar, ao final, da “cassação da Permissão para Dirigir”, cuja própria existência é motivo de polêmica.

1ª distinção: Tempo de duração da penalidade.

A suspensão é temporária, enquanto que a cassação é definitiva, com as observações a seguir.

O período de suspensão deve ser determinado pela autoridade instauradora do processo administrativo, avaliando-se cada caso, no exercício do poder discricionário, e em atendimento ao escalonamento constante da Resolução do CONTRAN n. 182/05:

– para a primeira suspensão, em 12 meses: de 01 a 03 meses, se as infrações cometidas não forem punidas com multas agravadas; de 02 a 07 meses, no caso de infrações punidas com multas agravadas com fator multiplicador de três vezes; de 04 a 12 meses, no caso de infrações punidas com multas agravadas com fator multiplicador de cinco vezes; e

– para a reincidência na aplicação da penalidade, em 12 meses: de 06 a 10 meses, se as infrações cometidas não forem punidas com multas agravadas; de 08 a 16 meses, no caso de infrações punidas com multas agravadas com fator multiplicador de três vezes; de 12 a 24 meses, no caso de infrações punidas com multas agravadas com fator multiplicador de cinco vezes.

O único caso de “suspensão do direito de dirigir” cujo período encontra-se predeterminado na lei é o cometimento da infração do artigo 165 do CTB (“dirigir sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa”), tendo em vista que, com a alteração do Código pela Lei n. 11.705/08 (“lei seca”), a penalidade passou a ser fixada em 12 meses de suspensão, independente da quantidade de substância ingerida pelo infrator.

Quanto à cassação, classifico-a como definitiva, justamente para contrapor a interpretação equivocada de algumas pessoas, quanto ao disposto no artigo 263, § 2º do CTB: Decorridos dois anos da cassação da Carteira Nacional de Habilitação, o infrator poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames necessários à habilitação, na forma estabelecida pelo CONTRAN.O fato de o Código estabelecer o interregno de 2 anos não significa que este é o período de duração da penalidade denominada “cassação da CNH”. Diferentemente do período de suspensão, ao fim do qual o condutor já pode reaver sua CNH (bastando apresentar à autoridade de trânsito a comprovação de realização do curso de reciclagem, nos termos do artigo 20 da Resolução do CONTRAN n. 182/05) , o término do prazo de 2 anos, após a cassação, não garante nenhum direito ao condutor cassado. A penalidade é, realmente, definitiva, porque, para voltar a dirigir, o interessado deve refazer todo o processo de habilitação, como se estivesse se habilitando pela primeira vez. O prazo constante do texto legal tem o único propósito, em minha opinião, de evitar que seja imposta uma pena de caráter perpétuo ao indivíduo, o que contrariaria o inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal: Não haverá penas … de caráter perpétuo.

2ª distinção: Motivos determinantes.

A “suspensão do direito de dirigir” é aplicada, basicamente, em 2 situações: acúmulo de 20 pontos no prontuário, no decorrer de 1 ano, e cometimento de infração que, por si só, preveja esta consequência jurídica.

A somatória de pontuação, no prontuário de cada motorista, é realizada toda vez que lhe é atribuída uma infração de trânsito, cuja gravidade determina o número devido de pontos, conforme artigo 259 do CTB: infração gravíssima – 7 pontos; grave – 5; média – 4 e leve – 3. O cálculo é feito sempre de maneira retroativa, de modo que, a cada infração registrada, somam-se, à sua pontuação, os pontos decorrentes das infrações cometidas nos 12 meses que lhe antecedem, ou seja, ao contrário do que alguns imaginam, os pontos não são “zerados” ao início de cada ano, mas cada infração tem a “validade de 12 meses”.

Importante esclarecer também que o prazo máximo de 12 meses somente é exigido para o período transcorrido desde a 1ª até a última infração de trânsito que façam parte de um mesmo “bloco de contagem de pontuação”, não sendo, todavia, o prazo prescricional para instauração do processo administrativo. Na verdade, a partir da somatória de 20 pontos, ou ainda, a partir do cometimento de uma infração que, por si só, preveja a penalidade de suspensão, o órgão de trânsito tem o prazo de 5 anos, para dar início ao processo administrativo correspondente, de acordo com o artigo 22 da Resolução do CONTRAN n. 182/05 (não adentrarei ao mérito quanto à possibilidade ou não de serem determinadas regras prescricionais em ato normativo, em vez de lei, por entender que, de toda forma, o CONTRAN adotou a regra geral, de prescrição quinquenal da Administração pública, como consta, por exemplo, da Lei n. 9.873/99).

Quanto às infrações de trânsito que estabelecem, por si só, a “suspensão do direito de dirigir”, são apenas 17 (dezessete), previstas nos artigos 165; 170; 173; 174; 175; 176, I a V; 210; 218, III e 244, I a V do CTB.

Os motivos determinantes da “cassação da Carteira Nacional de Habilitação”, por sua vez, estão discriminados no artigo 263 do CTB:

Art. 263 – A cassação do documento de habilitação dar-se-á:I – quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo;

II – no caso de reincidência, no prazo de doze meses, das infrações previstas no inciso III do art. 162 e nos arts. 163, 164, 165, 173, 174 e 175;

III – quando condenado judicialmente por delito de trânsito, observado o disposto no art. 160.

Embora o artigo 263 refira-se a “documento de habilitação” e mesmo levando-se em conta que, segundo o § 3º do artigo 269, são documentos de habilitação a Carteira Nacional de Habilitação e a Permissão para Dirigir, entendo que tal dispositivo trata tão somente da “cassação da CNH”, pois tal interpretação é a única possível para não se desprezar a penalidade específica de “cassação da PPD”, da qual tratarei mais adiante.

Veja-se que, via de regra, quando se aplica a “cassação da CNH”, pressupõe-se que o condutor já foi, anteriormente, suspenso, isto é, há certa gradação na aplicação de tais penalidades: primeiro suspende e depois cassa. Entretanto, é possível imaginar situações em que se aplica diretamente a cassação, sem ter sido submetido o condutor à suspensão temporária. Imagine, por exemplo, que um motorista cometeu a infração de trânsito do artigo 165 (“dirigir sob a influência de álcool”) duas vezes em um mesmo mês, logicamente sem ter decorrido tempo suficiente para se instaurar o processo administrativo referente à 1ª infração. A constatação posterior da reincidência, na mesma infração de trânsito (veja-se que o dispositivo legal não exige reincidência na penalidade e sim na conduta praticada), deve acarretar a imposição direta da “cassação da CNH” (já que não haveria lógica em primeiro suspender, sabendo-se que, ato contínuo, deveria ser aplicada a pena definitiva).

No caso previsto no inciso I, considero importante destacar que o Código estabelece a cassação para aquele que é surpreendido CONDUZINDO qualquer veículo, durante o período de suspensão. A interpretação mais racional nos exige duas conclusões: 1ª. Não se trata de qualquer veículo, mas apenas um veículo automotor; 2ª. O infrator deve ser surpreendido, no período da suspensão, efetivamente conduzindo o veículo (sou contra, por exemplo, aplicar a “cassação do documento de habilitação” àquele que, durante o período de suspensão, deixou de indicar quem conduzia o veículo do qual é o proprietário, pois se trata de mera presunção quanto à condução).

Quanto ao terceiro caso de cassação (quando condenado por delito de trânsito), embora tenha minhas reservas quanto à sua aplicabilidade prática, como consequência direta e indissociável de qualquer condenação por crime de trânsito (já que existem tipos penais que prevêem expressamente, como pena, a mera suspensão criminal), o fato é que o CONTRAN regulamentou recentemente a matéria, por meio da Resolução n. 300/08.Estas são, em suma, as distinções entre as duas modalidades de EXTINÇÃO DA LICENÇA PARA DIRIGIR, constantes do CTB, no que se refere ao tempo de duração da penalidade e aos seus motivos determinantes.

Ressalto, por fim, a questão da penalidade de “cassação da PPD”, que tem sido negligenciada por vários profissionais de trânsito, como se não existisse e não fosse, portanto, necessária a instauração de processo administrativo para sua imposição.Minha opinião, a partir de uma interpretação sistemática do CTB, é a de que a “cassação da PPD” ocorre toda vez que, ao final do período da Permissão para Dirigir (documento de habilitação provisório, válido por 1 ano), for constatado que o permissionário cometeu infração de natureza gravíssima ou grave ou, ainda, foi reincidente em infrações médias, obrigando-o a reiniciar todo o processo de habilitação, na conformidade dos §§ 3º e 4º do artigo 148 do CTB:

Art. 148. …

§ 3º – A Carteira Nacional de Habilitação será conferida ao condutor no término de um ano, desde que o mesmo não tenha cometido nenhuma infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média.

§ 4º – A não obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, tendo em vista a incapacidade de atendimento do disposto no parágrafo anterior, obriga o candidato a reiniciar todo o processo de habilitação.

Muito embora alguns entendam que a não concessão da CNH, ao término do período da PPD, seja apenas uma negativa do órgão de trânsito, frente ao não cumprimento de requisitos que o condutor deveria atender, minha exegese tem como fundamento o seguinte raciocínio:

I) A “cassação da PPD” existe como penalidade específica, pois está prevista no inciso VI do artigo 256 do CTB. Ignorar esta previsão legal significa simplesmente desconsiderar o texto da norma jurídica, que, a rigor, não poderia conter expressões desnecessárias;

II) O artigo 264 do CTB, que versaria a respeito desta penalidade, foi vetado justamente com o argumento de que o assunto já estava regulamentado pelos §§ 3º e 4º do artigo 148, o que permite a interpretação de que tais dispositivos se mantiveram no Código aprovado, para tratar da “cassação da PPD”;

III) Apesar de existirem recursos cabíveis contra as infrações atribuídas ao condutor permissionário (por ocasião da aplicação das multas), é fato que existem situações de pontuação incorretamente geradas, que somente são constatadas quando da negativa do órgão de trânsito em conceder a CNH definitiva, momento em que o indivíduo atingido deve ter alguma segurança jurídica, para que não seja injustamente punido: a única maneira de se garantir a lisura do procedimento, assegurando-se o direito ao contraditório e à ampla defesa, é conceber o ato denegatório da CNH como representação da imposição da penalidade de “cassação da PPD”, com a instauração do correspondente processo administrativo (note-se que o artigo 265 do CTB, ao exigir o processo administrativo, faz menção à cassação do DOCUMENTO DE HABILITAÇÃO e não somente à cassação da CNH); e

IV) Embora, ao término de 1 ano, a PPD deixe de ter validade, para a continuidade do exercício das prerrogativas decorrentes da licença concedida pelo Estado, considero importante que a extinção do ato administrativo seja devidamente documentada, para, se for o caso, retirar os dados do condutor do Registro Nacional controlado pelo DENATRAN, principalmente para se diferenciar dos casos em que se deixou de emitir a CNH definitiva, por mera falta de interesse do próprio condutor, que não tenha comparecido ao órgão de trânsito competente (até porque o exame médico feito no início do processo de formação de condutores continua válido, para todos os efeitos).

Infelizmente, o que tenho observado é que, além de frequentemente os órgãos de trânsito competentes não instaurarem o processo administrativo para se deixar de conceder a CNH ao permissionário incurso nas condições dos §§ 3º e 4º do artigo 148, outro erro comum é a vinculação da decisão administrativa à quantidade de pontos no prontuário do condutor, deixando-se de avaliar a gravidade das infrações cometidas, como estabelece o dispositivo legal citado.

Para que a explicação fique mais clara, vejamos um exemplo: se um condutor, durante o período da Permissão, cometer diversas infrações leves ou apenas uma média e outras leves, permanecerá com o direito de obter sua CNH definitiva, posto que a redação do § 3º do artigo 148, anteriormente transcrita, apenas cria empecilho àquele que comete infração gravíssima, grave ou é reincidente em infração média; todavia, alguns órgãos de trânsito têm impedido a obtenção da CNH definitiva a todo aquele que conta com mais de 4 pontos em seu prontuário (como se essa constatação fosse prova inequívoca de reincidência em infrações médias), em flagrante desrespeito a direito líquido e certo do motorista, passível de questionamento judicial, via Mandado de segurança (mais uma vez, aponto a necessidade de processo, para que seja possível contestar, administrativamente, tais arbitrariedades).

Pelo texto da lei, entendo que os pontos decorrentes de infrações de natureza leve e da única infração de natureza média que porventura tenham sido cometidas no período da Permissão somente deveriam ser computados para eventual instauração de processo administrativo destinado à suspensão do direito de dirigir, seja durante o período da própria PPD, ou mesmo após concedida a CNH definitiva, respeitando-se apenas o prazo prescricional para imposição da penalidade (àqueles que talvez contestem meu posicionamento, com o argumento de que o “sistema de processamento de dados” não permite a imposição de suspensão a condutor permissionário, antecipo meu entendimento de que a função administrativa é que deve se adequar ao texto legal e não o contrário).

Conclusão:

Não existe, propriamente, um DIREITO DE DIRIGIR. A comprovação, perante o Estado, dos requisitos exigidos para a condução de veículos automotores, faz surgir a obrigatoriedade de emissão, pelo Poder público, de uma LICENÇA ao interessado, a qual, como modalidade de ato administrativo, pode ser alvo de extinção, por meio de sua retirada pelo próprio órgão emissor, mediante o correspondente processo administrativo e assegurando-se os direitos ao contraditório e ampla defesa.

“Suspensão do direito de dirigir”, “cassação da CNH” e “cassação da PPD” são, portanto, denominações dadas às penalidades administrativas de trânsito, previstas no CTB, que se classificam, no Direito administrativo, como uma forma de extinção de ato administrativo negocial, isto é, uma CASSAÇÃO DA LICENÇA PARA DIRIGIR. Diferem, entre si, pelos motivos que as determinam, e pelo fato de que, enquanto a “suspensão do direito de dirigir” opera uma extinção temporária da licença outrora concedida (ou dos seus efeitos, como preferem alguns juristas), a “cassação do documento de habilitação” (CNH ou PPD) a extingue definitivamente, fazendo com que o administrado retorne à situação anterior à sua concessão e com a possibilidade de requisitá-la novamente, desde que submeta a novo processo de formação de condutores, de imediato (se cassada a PPD) ou após 2 anos da penalidade (se cassada a CNH).