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O Acidente De Trânsito É Necessário Ou Contingente?

Pode parecer bobagem, quando se acostuma com determinada linguagem, mas avaliar asexpressões e as palavras que utilizamos em nossas relações cotidianas é tão importante quanto aprópria comunicação em si, pois o que falamos, escrevemos e transmitimos a outras pessoas (edelas recebemos) representa muito mais do que apenas o sinal linguístico empregado,proporcionando a recepção de uma mensagem bem mais rica de significados do que muitas vezespretendemos, já que o receptor da comunicação atribui um entendimento próprio, impregnando, àexposição do outro, suas convicções pessoais, suas crenças, seus valores e sua história de vida.

Frequentemente, somos mal interpretados em nossas relações interpessoais, seja pelaspalavras empregadas, pelo tom e/ou timbre da voz ou pela linguagem não verbal que passou por nósdespercebida. Em outras ocasiões, o contexto da comunicação leva a uma percepção distorcida doque se está tratando, justamente porque a sociedade já assimilou, de maneira equivocada, overdadeiro alcance das palavras que se utiliza.

Esta breve introdução tem o objetivo de nos chamar a atenção para a característicaquestionadora, inerente ao ser humano, de reavaliar constantemente seus princípios, suas idéias,seus pensamentos, enfim, sua maneira de ver o mundo. Não haveria, senão esta percepção, outrofundamento para se justificar a substituição de expressões já consagradas pelo uso, que, mesmoquestionáveis, permitem uma comunicação eficaz entre as pessoas.Toda vez que se menciona a expressão “acidente de trânsito”, qualquer interlocutor sabeexatamente do que estamos tratando, pois a linguagem remete, automaticamente, a lembranças deeventos ocorridos entre usuários da via pública, com danos patrimoniais e/ou pessoais, que, poralgum motivo, não foram evitados. Mas há aí um efeito perverso, provocado especificamente pelaassimilação equivocada do alcance do termo (entre as várias acepções da palavra “acidente”,encontradas no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, destaca-se, como primeira, a seguinte:”acontecimento casual, fortuito, imprevisto”). O próprio envolvido no “acidente”, causador ou não,justifica-se pela “impossibilidade” de ter evitado aquele prejuízo.

Algumas pessoas chegam, atémesmo, a se desculpar (no sentido de se livrar da culpa) com o outro envolvido no evento, com aalegação “você acha que eu fiz isso de propósito? Foi um acidente…”

Em junho deste ano, o Jornal da Tarde (com veiculação em São Paulo) publicou um artigode minha autoria, no Caderno Opinião, com o título “É hora de repensar os acidentes de trânsito”,em que procurei destacar os reflexos da Resolução do Conselho Nacional de Trânsito nº 300/08(que estabelece procedimento administrativo para submissão do condutor a novos exames para quepossa voltar a dirigir quando condenado por crime de trânsito, ou quando envolvido em “acidentegrave”) e chamei a atenção justamente para a necessidade de reavaliarmos a maneira comoencaramos os acidentes de trânsito: meras fatalidades, ocorrências independentes da vontadehumana ou produtos das irresponsabilidades dos usuários da via pública? (o texto pode seracessado em http://www.jt.com.br/editorias/2009/06/26/opi-1.94.8.20090626.1.1.xml).

Para os profissionais do trânsito, o tema é recorrente e de pleno conhecimento. Atualmente,até evito, quando falando a este tipo de platéia, ficar contabilizando os enormes gastos anuais e aimensa quantidade de vítimas dos acidentes de trânsito, pois, no linguajar comum, é “chover nomolhado”. Mas e para a população em geral? Qual é o grau de compreensão e participação social decada pessoa? Até que ponto este tipo de reflexão pode ser útil, para a mudança do quadro deviolência cada vez mais acentuado? Será que a simples substituição de uma expressão consagradapode alterar algum comportamento?

Minha opinião é a de que o simples fato de pensar sobre o assunto já é digno de ótimos

resultados. Quando a pessoa se defende de um acidente, dizendo que foi “apenas um acidente”, nãohá, nela, a preocupação de adoção de um comportamento seguro, pois o acontecimento foi casual,fortuito, imprevisto, como diz o dicionário (e a cultura popular).

Quando se chama esse “acidente”por outro nome (não nos preocupemos, por enquanto, qual nomenclatura), obriga-se a pensar sobreo evento ocorrido e o que ele representa para a pessoa, qual foi a sua real participação, o que ela feze o que ela poderia ter feito ou deixado de fazer.Não sou, por certo, o “inventor da roda”. Muitos outros já tem se debruçado sobre o assunto,dentre os quais destaco o amigo Dr. Cássio Mattos Honorato, grande Especialista em trânsito ePromotor de Justiça no Estado do Paraná, que tem utilizado em aulas, palestras e, inclusive, em suasdenúncias junto ao Poder Judiciário, a expressão “evento culposo de trânsito” ou “evento doloso detrânsito”, para diferenciar os “acidentes” (palavra substituída por “evento”), conforme aresponsabilidade subjetiva de cada agente, de acordo com a classificação de dolo e culpa, constantedo artigo 18 do Decreto-lei nº 2.848/40 (Código Penal). A idéia é realmente ótima, a começar peloefeito provocado em cada pessoa, envolvida ou não, de querer saber o que significa “evento culposode trânsito”, ao contrário do “acidente de trânsito”, que já causa certa sensação de impotência,diante de um acontecimento casual.

O próprio Código de Trânsito utiliza a palavra “acidente” em diversos dispositivos (vinte eseis, para ser mais exato), ao tratar das atribuições dos órgãos e entidades do Sistema Nacional deTrânsito (artigos 19, XI; 20, IV e VII; 21, IV; 22, IX e 24, IV); da utilização da buzina (artigo 41,I); da realização de provas nas vias públicas (artigo 67, III); da educação para o trânsito (artigos 76,parágrafo único, IV; 77 e 78); do condutor condenado por delito de trânsito (artigo 160, § 1º); dasinfrações de trânsito (artigos 176; 177; 178; 231, II, c); do curso de reciclagem para motoristasinfratores (artigo 268, III); da submissão aos exames de alcoolemia (artigo 277); da análise de discodo “tacógrafo” (artigo 279); dos crimes de trânsito (artigos 301; 302, parágrafo único, III; 304; 305e 312); das normas transitórias (artigo 314) e dos conceitos e definições (patrulhamento epoliciamento ostensivo de trânsito). Não há, todavia, um conceito escrito para a expressão “acidentede trânsito”, apesar de ser do conhecimento de qualquer pessoa, dada, mais uma vez, à consagraçãodo seu uso.

O único documento técnico, na verdade, que contém uma explicação do que vem a ser”acidente de trânsito” é a Norma Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas nº10.697/89, que assim prescreve: “todo evento não premeditado de que resulte dano em veículo ouna sua carga e/ou lesões em pessoas e/ou animais, em que pelo menos uma das partes esteja emmovimento nas vias terrestres ou áreas abertas ao público. Pode originar-se, terminar ou envolverveículo parcialmente na via pública”. Como se percebe, a explicação nos dá ainda maiortranquilidade de nossa isenção no acontecimento fortuito, pois se o “acidente” não foi premeditado(ou seja, planejado, idealizado), não há porque o envolvido se sentir culpado.

Embora a maioria das pessoas não conheça a norma da ABNT, esta é a idéia geral queconstatamos entre os condutores. Contudo, como se demonstrará a seguir, a questão não é se oevento foi premeditado ou não, o que importa é se havia a possibilidade de que ele tivesseDEIXADO DE ACONTECER.É claro que, independentemente de não terem sido planejados, os “acidentes de trânsito”ocorrem, o tempo todo: este é um fato inquestionável. A pergunta é, então, se estes acontecimentossão necessários ou contingentes. Em outras palavras, estes eventos ocorrem porque não poderiamdeixar de ocorrer, como obra de uma interferência natural (ou divina), ou porque os fatosaconteceram de uma determinada maneira, que poderia ter sido evitada (admitindo-se, então, apossibilidade totalmente contrária, da sua não ocorrência)?

A diferença entre necessário e contingente foi um dos grandes legados da Filosofia grega,que possibilitou a sistematização do conhecimento humano, ao analisar os fatos ocorridos por açãoda Natureza (e buscar-lhes a explicação) e os eventos ocorridos pela ação do homem, que tem odiscernimento para fazer escolhas. Foi na busca de respostas, que os filósofos concluíram que onecessário é aquilo que ocorre por obedecer a leis naturais, ou seja, que não pode ser senão como é,enquanto que o contingente pode ser ou não ser, isto é, pode ocorrer de uma maneira ou da maneiraoposta (dividindo-se em “acaso”, relativo aos acontecimentos da natureza e “possível”, relacionadoaos acontecimentos humanos).

É fato que a nossa rica língua portuguesa comporta outras interpretações quanto à palavra”contingente”, seja como sinônimo de “acidente” (encontrado em alguns dicionários), seja comorepresentação de significados bem distintos, como o “contingenciamento” (expediente de políticaspúblicas), ou o “excesso de contingente”, empregado para demonstrar que o número de militaresconvocados para servirem às Forças Armadas já excedeu a quantidade necessária para determinadomomento e região. Esta constatação não impede, entretanto, que busquemos a etimologia da palavrae o seu emprego no conhecimento filosófico, para adequá-la ao presente estudo.

Assim, fixemos na polaridade entre “necessário” e “contingente”, dicotomia que o filósofoAristóteles (século IV a.C.) passou a conceber, como modalidades lógicas das diferentesproposições do conhecimento. O “necessário”, ressalta-se, é aquilo que não pode ser de outramaneira, tendo sido devidamente comprovado pelas ciências e pela inquirição humana, enquantoque o “contingente” pode acontecer ou não, há tanta probabilidade de que ele seja desta ou daquelamaneira, dependendo de uma série de acontecimentos favoráveis ao que efetivamente ocorreu,dividindo-se em “acaso” e “possível”.

O “acaso”, por exemplo, como sub-modalidade do contingente era entendido por Aristótelescomo o encontro acidental de duas séries de acontecimento que são, cada uma delas, necessária.A Drª Marilena Chauí, Professora da Universidade de São Paulo, em seu livro “Convite àFilosofia” usa, como exemplo para demonstrar o acaso, o acontecimento de uma pedra que cai emum homem que caminha em determinado local. Neste caso, é necessário que a pedra caia, pela forçainevitável da gravidade, dadas as condições favoráveis à sua ocorrência, assim como é necessárioque o homem caminhe, por conta da sua capacidade de locomoção, aliada às leis anatômicas efisiológicas que regem o seu corpo; os fatos necessários, isoladamente analisados, não sãosuficientes, porém, para que a tragédia ocorra; pelo contrário, foi preciso que ambos acontecessemno mesmo local e momento, para que exatamente aquela pedra caísse na cabeça daqueledeterminado homem (CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª edição. São Paulo: Editora Ática,2006, p. 30).

Ao explicar o “possível” (a segunda sub-modalidade do contingente), a autora relaciona-a aação humana, que possibilita uma escolha voluntária e livre, adotando como exemplo a utilizaçãoda bomba atômica em Hiroshima: apesar de ser necessário que os corpos pesados caiam, foi aescolha deliberada de uma ação humana que propiciou o acontecimento fatídico da 2ª GuerraMundial.

Com base em tais explicações, analisemos os acontecimentos de trânsito, a ponto dedeterminar a sua necessidade ou contingência de ocorrência: fazendo uma simples comparação,podemos dizer que uma folha de árvore que cai ao chão é um fato necessário, tanto quanto ummotociclista que cai ao chão por perder o equilíbrio; em ambos os casos, houve a incidência daforça da atração gravitacional do corpo, conhecida como a lei de Newton da gravitação universal.Mas, no caso do motociclista, é de se perguntar: o que levou ao desequilíbrio? Seconstatarmos que foi pela sua falta de habilidade ou pela “fechada” de outro motorista, teremos aí oencontro do necessário com uma ação ou omissão humana. Este acontecimento, destarte, não podeser concebido como um evento casual, imprevisto, mas sim como algo contingente: UMCONTINGENTE DE TRÂNSITO.

É necessário que o corpo de um ocupante de veículo seja arremessado para fora (ou contra oseu interior), quando a velocidade é abruptamente reduzida; a isto se deu o nome de força da inércia(1ª Lei de Newton: “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme emuma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele);entretanto, não é necessário que se deixe de utilizar o cinto de segurança, trata-se de uma escolhadeliberada. Desta forma, o condutor gravemente ferido em uma colisão, por não usar o cinto, não seenvolveu em um infortúnio, mas em um acontecimento contingente: UM CONTINGENTE DETRÂNSITO.

É necessário que um motociclista, ao cair da moto e impactar sua cabeça no chão, sofra umatransferência de energia para o seu corpo, tendo em vista a equivalência massa-energia determinadapela famosa fórmula de Albert Einstein: E=mc². Todavia, não é necessário que o motociclistaconduza sem capacete, tratando-se de escolha deliberada. Não estamos, portanto, diante de umafatalidade, quando nos deparamos com a horrível cena de um motociclista, sem capacete, com ocrânio aberto, agonizando no chão. Isto nada mais é do que um fato contingente: UMCONTINGENTE DE TRÂNSITO.

É necessário que um condutor sob influência de álcool não tenha a percepção necessáriapara se desviar de obstáculos no seu caminho, pois o seu organismo encontra-se debilitado e comsérios prejuízos de funcionamento normal, o que independe da sua vontade, pois se tratam deprocessos bioquímicos e neurológicos; o mesmo não se pode dizer da decisão de se misturar álcoole direção, pois é possível adotar a postura de cautela e prudência que se espera de alguém quepretende dirigir. Mais uma vez, não podemos aceitar como mero infortúnio: as mortes causadas pormotoristas embriagados são nada mais do que o encontro do necessário com o possível, ou seja, umfato contingente: UM CONTINGENTE DE TRÂNSITO.Até mesmo os casos em que não houve absolutamente nenhuma ação ou omissão docondutor podem ser interpretados sob este prisma: imaginemos, por exemplo, um condutor quedirige durante um temporal inesperadamente iniciado e tem seu veículo atingido por uma árvore: seanalisarmos os fatos isoladamente, tratam-se de dois eventos necessários: a queda da árvore (por umraio ou pelo vento) e a danificação do veículo (pelo impacto da massa da árvore sobre o carro).

Como não houve nenhuma ação humana nesta situação, não há o que se falar em possível, masainda assim, foi imperioso que os dois fatos necessários coexistissem e, como diria Aristóteles, istonada mais é do que o acaso e, portanto, mais um fato contingente: UM CONTINGENTE DETRÂNSITO.

Poderíamos enumerar aqui diversos outros exemplos, mas creio que estes bastam paracompreender o raciocínio utilizado, que visa demonstrar que o acidente de trânsito não pode serconsiderado como um acontecimento NECESSÁRIO em nossa sociedade, urbana e industrializada,que tem no automóvel uma das maiores fontes de admiração e desejo, mas é um eventoCONTINGENTE, ocorrido ou pelo ACASO, devido às forças da natureza, ou por ser POSSÍVEL,graças à uma deliberada ação humana.

Diante de tudo o que se expos, minha sugestão é que o substantivo ACIDENTE comece aser substituído, em nossa comunicação verbal (oral e escrita), pelo adjetivo que o representa, isto é,CONTINGENTE, para transmitir às pessoas a idéia de que é possível evitá-lo.

Como proposta de definição, passível obviamente de melhorias, ao longo da sedimentaçãodesta nova idéia, fica a seguinte:

CONTINGENTE DE TRÂNSITO: todo evento ocorrido entre veículos, pessoas e/ou animais,durante a utilização da via pública, em que se verifique a ocorrência de fatos naturais, associadosentre si ou a uma ação ou omissão humana, de que resulte dano patrimonial, lesão ou morte.

Ainda que todo neologismo enfrente resistências para se incorporar ao vocabulário social, aprimeira resposta que teremos àqueles que estranharem o uso NOVO desta VELHA palavra é aseguinte: “Chamo de CONTINGENTE de trânsito, porque não era NECESSÁRIO que esse fatotivesse acontecido”.