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Sistemas processuais penais

Os sistemas processuais surgiram ao longo do tempo, adequando-se à sociedade a ser regulada, levando em consideração além de aspectos culturais e religiosos, as necessidades e as práticas dos povos, procurando, através de critérios lógicos, definir as formas de acesso à prestação jurisdicional, os princípios reitores e ainda a forma como deve ser realizada a gestão probatória.

Um Sistema nada mais é do que um agrupamento de critérios definidos e organizados, de forma a permitir a aplicação destes nas situações similares, ou seja, são procedimentos agrupados que se correlacionam, mas não impedem a individualização e comparação com outros sistemas.

Para Alexandre Zilli os sistemas processuais penais são “campos criados a partir do agrupamento de unidades que se interligam em torno de uma premissa”1 . Assim, para o mesmo autor, o sistema processual penal teria unidades inter-relacionadas, com forma e características próprias, o que possibilitaria uma melhor organização dos procedimentos processuais penais e ainda uma análise comparativa com os demais sistemas: inquisitório e misto.2

Para atingir o escopo pretendido, mister se faz identificar, a definir e diferenciar os principais modelos processuais que se destacaram ao longo dos anos, o modelo acusatório, inquisitório.

A) SISTEMA INQUISITÓRIO

Não se sabe ao certo de quais épocas datam as primeiras manifestações inquisitoriais. Há indícios de que na cultura egípcia cabiam aos sacerdotes julgar os crimes mais graves e aos juizes os crimes de natureza leve, pautando-se na a acusação como dever cívico das testemunhas do fato criminoso; a polícia repressiva e auxiliar da instrução; a instrução pública e escrita; o julgamento secreto e a decisão simbólica. Tais características, para Geraldo Prado3 seriam o berço do sistema inquisitorial.

Após longa evolução, o sistema inquisitório adquiriu as características que conhecemos hoje. Em Roma, o modelo inquisitório começou a ser utilizado com estrita dependência ao modelo acusatório, então predominante. Nesta época foram criados pelo Senado os quaesitores4, que tinham como finalidade investigar as infrações penais que tivessem conhecimento.

O Sistema Acusatório, que como já dito, predominava naquela época, passou a ser alvo de duras críticas dos processualistas clássicos, que passaram a apontar inúmeros inconvenientes. Tornaghi aponta algumas das críticas feitas na época ao sistema acusatório, por exemplo, a “impunidade dos criminosos; facilitação da acusação falsa; desamparo dos fracos; deturpação da verdade; impossibilidade de julgamento em muitos casos e inexequibilidade da sentença, entre outros.”5

A partir daí, o sistema inquisitório começou a ganhar espaço e no Século XII ficou a cargo da Igreja a investigação e o julgamento das infrações penais, dando início ao Período da Inquisição.

O Sistema Inquisitório passava a demonstrar, já naquela época, uma das suas principais características, a concentração do poder nas mãos do julgador. Tal fato dificultava e muito a defesa do acusado, que além de ser submetido às práticas danosas adotadas pela igreja, por exemplo, a tortura, ainda sofria com a falta de publicidade dos atos processuais. É de fácil constatação que, por tais características, o sistema inquisitório, historicamente triunfou sob a égide de poderes centralizadores como o absolutismo.6

Assim, após a analise do desenvolvimento do sistema inquisitório ao longo do tempo, é imperioso apontar outras características, além das já apontadas, do multicitado modelo processual, quais sejam, a falta de publicidade no processo, falta de oportunidade para defesa, procedimento escrito, a impossibilidade de recusa do julgador, provas com regras confusas e por fim, a condenação inevitável pela apresentação da confissão.7

Alexandre Zilli8 aponta ainda, como característica do sistema inquisitórial a hierarquização da jurisdição no sistema recursal, a presença do órgão inquisidor e o acusado sem garantias.

B) SISTEMA ACUSATÓRIO

As primeiras manifestações do Sistema Acusatório datam da Grécia Antiga (773a.C.:323a.C.), quando, nos crimes particulares, o ofendido se encarregava da acusação e da produção de provas. Já nos crimes públicos, o julgamento era função da Assembléia do Povo9, tudo feito através da oralidade e de forma pública.

Em Roma, também se verifica precedentes do modelo acusatório da época, sendo que o processo era desenvolvido pelo método da acusatio10. Através deste se dava acusação, sendo que para os crimes públicos a acusação era feita pelo ofendido ou interessado e para os crimes particulares, a acusatio era apresentada pelos parentes. Nesta fase, a investigação se dava após o recebimento da denúncia, por meio de poderes conferidos pelo Magistrado ao Acusador. Já neste estágio, o modelo acusatório previa oportunidade para que as partes apresentassem as suas provas, sem qualquer interferência do julgador.11

Após o período da inquisição, através dos ideais humanistas de Beccaria, Rosseau, Montesquieu, Volteaire, o Sistema Acusatório voltou a ser prestigiado, o que significou a volta da oralidade, publicidade e principalmente a redefinição dos papéis desempenhados pelos sujeitos do processo (Juiz, Acusador e Acusado).

Hodiernamente, o Sistema Acusatório é reconhecido, em sentido lato, por atribuir os poderes de julgar, acusar e defender, a órgãos diferentes. Do mesmo modo, é marca do Sistema Acusatório a figura do juiz imparcial, figurando entre o acusador e o acusado. A predileção por um procedimento oral, o sistema de provas sem qualquer apego a regras específicas e por fim o acusado encarado como sujeito de direitos e garantias.

Nesse passo, é importante realizar uma comparação entre os dois sistemas, acusatório e o inquisitório, como forma de melhor delinear às suas características. Eugênio Pacelli12 apresenta a distinção clássica entre os dois sistemas, utilizando o critério da titularidade atribuída ao órgão julgador. Nesse mesmo sentido Sérgio Demoro Hamilton apresenta uma distinção mais acurada quando assevera que:

“no processo acusatório, como sabido, as funções de acusar, defender e julgar integram a atribuição de órgãos distintos, ao contrário do que se dá com o modelo inquisitório. É naquele que a clássica afirmação de Búlgaro (século XII), segundo o qual o Juízo penal reside no actum trium personarum, encontra sua verdadeira afirmação. Em consequência, a acusação será, sempre, formulada, por órgão diverso do juiz. Em outras palavras, em virtude do princípio da inércia, não há jurisdição sem ação, para usar a conhecida expressão de CARNELUTTI, ao designar o processo penal sem demanda, expungido do nosso ordenamento jurídico pela CF/88, como já mencionado”.13

Sem embargo, já percebemos a dificuldade em se encontrar um sistema processual puro. Em cada sistema encontram-se claras influências de outros sistemas. A partir dessa dificuldade é que surgiu a idéia de sistema misto. C) SISTEMA MISTO

Com a mudança de concepção da igreja católica e ainda pelas constantes críticas feitas por diversos téoricos da época ao sistema acusatório, um novo sistema processual passa a ser adotado, o denominado sistema misto, que traz idéias mescladas dos sistemas inquisitório e do acusatório. Henry Grazinoli14 destaca que o código de Napoleão, de 1808, o austríaco de 1873, o código alemão de 1877, o norueguês de 1877, o da Hungria de 1896, Espanha de 1882 e o por fim o italiano de 1913, já adotavam o sistema misto.

O sistema misto surgiu com a proposta de reunir as melhores características dos sistemas acusatório e inquisitório, naquilo que não se contrapusessem, com intuito expurgar os problemas verificados nestes.

Alguns autores chegam a denominar o sistema misto de “inquisitório reformado”, no sentido de que haveria maior prevalência de características inquisitoriais. Alexandre Zilli afirma que “na verdade, trata-se da subsistência do inquisitório que recebeu uma roupagem emprestada do acusatório”15

O fato é que sistema misto se desenvolveu como um sistema independente, com critérios e definições próprias. Tourinho Filho ao discorrer acerca do tema aponta no sistema misto três etapas “a)investigação preliminar; b) instrução preparatória; c)fase do julgamento”16. Segundo o autor, as duas primeiras etapas teriam prevalência marcante de características inquisitoriais, enquanto que a última se desenvolveria segundo os ideais do sistema acusatório, estabelecendo o contraditório, a publicidade e a oralidade.

D) ADVERSARIAL SYSTEM E O INQUISITORIAL SYSTEM

As expressões adversarial e inquisitorial, leva nos, de plano, a associar o adversarial system ao modelo acusatório e o inquisitorial system ao modelo inquisitório. Contudo, essa vinculação não deve ser feita de modo indistinto, isto porque o adversarial e inquisitorial system dizem respeito a atuação das partes na condução da marcha processual, ou seja, que assumem diante dos atos processuais.

Os modelos adversarial e inquisitorial são verdaderios subssistemas processuais na medida em que regulam critérios que determinam a forma com que o processo se desenvolve. Desta forma é que um Sistema Acusatório poderá adotar o adversarial system ou o inquisitorial system.

O sistema adversarial, de origem anglo-saxônica, é caracterizado pela condução do processo pelas partes, promovendo todos os atos de instrução e investigação. Segundo a definição de Alexandre Zilli, o Sistema adversarial:

“caracteriza-se por uma disputa travada entre duas partes processuais perante uma autoridade imparcial que, além de deter o poder decisório, examina, de forma inerte, todo o material probatório que é apresentado por aquelas.”17

Nesse modelo a figura do Juiz é tida como passiva e imparcial, já que toda a marcha processual é conduzida pelas partes, que travam uma disputa permanente no bojo do processo. Assim, segundo Barbosa Moreira, o fato de que as partes, a todo momento, encontram-se imbuídas em vencer, conduziria a materialização da verdade.18

Em contrapartida, o inquisitorial system, típico da Europa Ocidental, o processo é desenvolvido pela figura do Juiz, o que Ada Pellegrini19 convencionou de desenvolvimento oficial. Portanto, compete ao Juiz determinar a produção de provas quando não julgar suficientes as apresentadas pelas partes, numa tentativa de fazer emergir dos autos a verdade.

Entretanto, para alguns doutrinadores, esse modelo colocaria processo penal como instrumento de políticas estatais e ainda contaminaria toda a imparcialidade do julgador na medida em que o mesmo seria influenciado quando da apuração fática. Contudo, o problema da imparcialidade do julgador será melhor discutida em item específico.

Portanto, a questão dos poderes instrutórios do juiz está intimamente ligada ao adversarial system e ao inquisitorial system, posto que estes pormenorizam a atividade de cada parte no processo. E nesse sentido, esclarece Barbosa Moreira:

Da exaltação do papel das partes à depreciação do reservado ao juiz o passo é curto. Em semelhante perspectiva, não surpreende que às vezes se invoque entre nós o princípio acusatório para negar que entre os poderes do magistrado haja de figurar o consistente em tomar iniciativas probatórias. Já outra opinião, de superlativa autoridade, estabelece distinção nítida entre “processo acusatório” e adversary system, à luz da qual se torna perfeitamente possível compatibilizar com o sistema acusatório a atribuição de poderes instrutórios ao órgão judicial, no curso do processo.”20 Assim, resta claro que os poderes instrutórios dos juiz não são incompatíveis com o modelo acusatório, mais sim com o adversarial sistem, posto que neste, compete as partes a ditar o ritmo do desenvolvimento processual e ao juiz cabe, apenas, a tarefa de julgar.

E) O SISTEMA BRASILEIRO

A identificação do sistema processual penal brasileiro não é tarefa fácil, já que enquanto a Constituição Federal define uma processo cercado de garantias individuais, outorgando ao Ministério Público a titularidade privativa da Ação Penal pública e prevendo expressamente a observância do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e o direito a imparcialidade do julgador, característicos do Sistema Acusatório, o Código de Processo Penal de 1941, como uma legislação elaborada sob a égide do regime totalitário, possui diversos dispositivos que são incompatíveis com o modelo acusatório de processo acima descrito.

Muito embora não ter a Constituição Federal previsto o sistema acusatório expressamente, este é facilmente identificado quando se analisa o modelo de processo garantista extraído do exame da Lei Maior.

O processualista Sérgio Hamilton se propôs a identificar o sistema processual penal brasileiro e afirmou que: “na verdade, basta ler o nosso Código para verificar que ele adotou um sistema misto: o inquisitório e o acusatório; o primeiro, como será visto, observado na fase preliminar de investigação ao passo que, com o ajuizamento da Ação Penal, ele assume o caráter acusatório. Porém, como se verá, nem mesmo naqueles dois momentos, há uma pureza sistemática. Na fase judicial, por exemplo, a publicidade e a oralidade, formas históricas do processo acusatório, não são observadas integralmente. Basta examinar os arts. 486 e 792 § 2º do CPP. Por outro lado, o procedimento comum (arts. 394 e ss.), reservado para os crimes mais graves, conservou a forma escrita, enquanto a oralidade acabou adotada, em nossa legislação, para o processo sumário.”21 Outros autores, como Amarildo Alcino22, mais radicais negam a existência de um Sistema Misto e chegam a afirmar que o sistema processual penal brasileiro é extremamente inquisitório. Essa afirmativa deve ser vista com reservas. De fato, o Código de Processo Penal Brasileiro apresenta, ainda, uma série de dispositivos de natureza inquisitorial, contudo, partindo-se do pressuposto de que ao Ministério Público compete a função de acusação, salvo algumas mitigações feitas pelo Código, é um tanto exagerada.

Não há dúvidas de que o sistema processual penal brasileiro encontra-se recheado de características inqusitoriais, mais isto não tem o condão de açambarcar todos os aspectos de um sistema processual, que como vimos, é bem mais amplo.

Assim, na ordem jurídica vigente, observa-se um processo penal acusatório mitigado, na medida em que a nossa Carta Magna institui um processo com uma visão garantista, com órgão de acusação distinto do órgão julgador, característico do Sistema Acusatório, mas o código de processo penal, no seu bojo, prevê critérios de natureza inquisitorial, que acabam por tolher a implantação de um sistema genuinamente acusatório, que se faz necessário em razão dos direitos individuais insertos na atual ordem constitucional.