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A súmula vinculante

1. INTRODUÇÂO2. OS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO INSTITUTO3. OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO INSTITUTO4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. INTRODUÇÂO

A súmula vinculante constitui-se num dos temas mais polêmicos e discutidos da chamada Reforma do Judiciário, sacramentada pela inserção no ordenamento jurídico da recente EC nº 45/2004. A discussão acerca do tema está longe de acabar. Vários são os posicionamentos adotados, uns favoráveis e outros contrários. Vale ressaltar que essa dissensão ocorreu, inclusive, nas duas Casas Legislativas ao longo da tramitação da PEC que resultou na EC n. 45/2004. Tal divergência atinge os próprios Ministros do STF, bem como vários operadores do Direito.

O principal argumento dos que são favoráveis leva a considerar que o efeito vinculante será a solução mágica para o problema da morosidade do Poder Judiciário; já os que são contrários advertem que o instituto é um perigoso dirigismo estatal, um instrumento a serviço do Poder Público, que aniquila a função transformadora e criadora da jurisprudência.

2. OS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO INSTITUTO

Os principais defensores da súmula vinculante assim se posicionam:

A súmula vinculante afastará as decisões judiciais conflitantes de um mesmo caso concreto, o que contribuirá para a segurança jurídica, já que os juízes aplicarão a interpretação mais correta, a qual será inserida na súmula a ser editada pelo STF. Nesse sentido, posiciona-se Araújo (2005, p. 65): “A insegurança jurídica estaria configurada na hipótese de serem dadas interpretações completamente diversas para um mesmo caso concreto, em que a tese jurídica é substancialmente a mesma, pelos diversos julgadores do país. (grifo nosso).

A súmula vinculante não prejudicará a figura do juiz-natural. Este “terá” que seguir a tese firmada pelo STF, uma vez que a matéria objeto da súmula, por diversas vezes, será interpretada e decidida num mesmo sentido. Assim, evitam-se as questões repetitivas e firma-se uma linha lógica da decisão. Além do mais, o juiz, especialmente o de primeira instância, continuará tendo o poder discricionário de julgar livremente, não contrário a súmula, mas apresentando argumentos plausíveis para não aplica-la, caso esta não ofereça a melhor solução ao caso proposto. Para isso, é imprescindível a fundamentação da decisão.

Vale registrar que o § 3º do art. 103-A da CF/88, acrescido pela EC nº 45/2004, prevê que a aprovação, revisão ou cancelamento das súmulas vinculantes poderá ocorrer por proposta daqueles que já possuem a prerrogativa constitucional para propor a ação direta de inconstitucionalidade. Outrossim, só serão editadas tais súmulas depois de reiteradas decisões sobre a matéria, mediante dois terços dos membros do STF.

Sobre a questão, Muscari (1999, p. 67) leciona:

Sob o fundamento de que juízes podem decidir da maneira que lhes aprouver, por força da garantia da independência da magistratura, jamais poderá justificar-se conduta que imponha ao “consumidor” a morosidade e a insegurança jurídica, que chegam a comprometer a própria justiça. (grifo do autor).

O grande argumento dos defensores da súmula é, sem dúvidas, o de que a sua implantação contribuirá para o desafogamento dos Tribunais, pois os processos serão agilizados e os recursos serão reduzidos, contribuindo, dessa forma, para uma prestação jurisdicional célere para o cidadão. É o “casamento perfeito”, de um lado o Estado prestando um serviço condizente com seus deveres Constitucionais, e do outro, o cidadão tendo uma resposta rápida e segura aos seus anseios.

O autor Pereira (1997, apud SILVA, 1998, p. 109) acredita ser um exagero o combate ao efeito vinculante da súmula. Observem o que ele relata:

Quem exerce advocacia efetivamente é testemunha de que há pretensões sem fomento de justiça, na certeza do desfecho inevitável. A vinculação nestes casos é irrecusavelmente construtiva, e não traz o propósito ou o efeito de impedir a evolução do direito. Não se deve confundir o efeito vinculante com a força cogente dos julgados, que é própria dos sistemas de Common Law. Há um exagero em combater sistematicamente o efeito vinculante.

O Poder Público, também, sofrerá o alcance das decisões objeto de sumulação por parte do STF. A ele não restará outra alternativa, senão respeitar e fazer cumprir os efeitos da súmula vinculante. Assim, acabarão os recursos procrastinatórios do Poder Público, desafogando os Tribunais Superiores das avalanches de processos que lá se encontram. Trataremos do Poder Público e suas relações nos capítulos ulteriores.

Por fim, a súmula vinculante veio para simplesmente ampliar a situação já existente no nosso ordenamento jurídico, uma vez que as Instâncias Inferiores procuram seguir os entendimentos jurisprudenciais do STF e STJ no trato dos temas a eles vinculados, a exemplo da possibilidade do relator negar seguimento a recurso em confronto com súmula daqueles Tribunais (art. 557 do CPC).

Não assiste razão os que dizem que o princípio da independência do magistrado, consagrada no art. 93, IX da CF/88, será desrespeitado. O magistrado continuará realizando sus atividades jurisdicionais com total liberdade, passando a analisar, com mais tempo e cuidado, aquelas situações diferentes que, até então, não foram objeto de interpretação por outros juízes e tribunais.

A respeito da independência dos juízes, Castro (2004, p. 6) ressalta:

Ao que parece, essa independência “romântica” do juiz no julgamento de todo e qualquer processo acaba por prejudicar o sistema como um todo. Numa fase inicial, o conflito de opiniões pode ser considerado natural e até mesmo positivo ao amadurecimento do direito, todavia a perpetuação desse conflito produz conseqüências nefastas. Com o passar do tempo e com a repetição dos julgamentos por mais e mais juízes, o sistema judicial deve apontar para uma tendência de interpretação, uniformizando-a de forma clara à sociedade.

Os efeitos da súmula vinculante se aproximam muito dos efeitos das decisões nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn) e nas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC), apreciadas e decididas pelo STF. Estas produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, nos termos do art. 102, § 2º da CF/88. Assim, obrigam a todos os operadores jurídicos, inclusive o Estado.

Os argumentos de engessamento do judiciário devem ser afastados, pois as súmulas a serem editadas pelo STF terão a oportunidade de serem revistas ou canceladas. Além disso, a súmula vinculante não provoca a cristalização do direito, não sendo correto o entendimento de que os juízes serão meros aplicadores de súmulas.

Uma vez adotada a súmula vinculante, aqueles que a defendem apontam algumas vantagens, a saber: haverá uma redução do número de causas que chegariam aos Tribunais Superiores, visto que o instituto funcionaria como um filtro a impedir que questões já decididas e sumuladas sejam novamente analisadas por aqueles; haverá uma economia e celeridade processuais, pois os processos serão agilizados e todos aqueles que estiverem envolvidos na lide saberão, em nome da segurança jurídica, antecipadamente, em que sentido a lide se resolverá, evitando, assim, a demora na prestação jurisdicional; aqueles acostumados a recorrer com intuito claramente procrastinatórios não encontrarão espaço confortável para tal fim; porém, é na segurança jurídica que reside o ponto forte da súmula vinculante, na medida em que os casos de mesma identidade terão o mesmo tratamento jurídico, evitando a conhecida “loteria jurídica” a que estão sujeitos os cidadãos. Nessa linha, leciona Muscari (1999, p. 42):

Para que possamos falar em prestação jurisdicional boa ou ótima, não basta que o magistrado consagre a justiça: é preciso que o provimento final seja fruto de um processo tecnicamente bem estruturado. E não só: o custo reclamado daquele que tem razão não pode ser tal que o impeça de bater às portas do Judiciário. Ademais, processo conduzido de forma técnica, que dá solução justa ao conflito sem onerar excessivamente o litigante, não é indicador seguro de uma prestação jurisdicional de qualidade: é indispensável que o lapso temporal consumido não se mostre exageradamente longo.

3. OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO INSTITUTO

Passaremos a tratar, agora, dos argumentos daqueles que são contrários ao Instituto.

Basicamente, os contrários à sua implantação no nosso sistema jurídico alegam a questão da independência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como um entrave ao Instituto. Convém lembrar que a nossa CF/88 estabelece de forma categórica a independência entre os Poderes da União – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário -, conforme se depreende do constante no art. 2º. Assim, o Judiciário faz lei individual, para um caso especifico, quando julga e decide prolatando uma sentença. Já a função constitucional do Poder Legislativo é editar normas de caráter geral, com alcance para toda a coletividade, e não individual, pois se assim o fizer, estará invadindo a esfera do Poder Judiciário. Muitos criticam afirmando que com a edição da súmula vinculante estaria o Judiciário invadindo a competência do Legislativo. Os defensores rebatem e afirmam que nos tempos modernos a função do Judiciário não deve se limitar à mera aplicação das leis. Ele deve, também, procurar pacificar as relações sociais travadas no dia a dia das pessoas. E, nesse sentido, o efeito vinculante desvendaria a verdadeira finalidade do Estado, que é atender os fins sociais.

Haverá a subtração da independência e autonomia dos juizes, que não mais julgará sob os ditames da liberdade e do livre convencimento motivado, figuras consagradas constitucionalmente. A interpretação dada por um Tribunal a uma lei ordinária, por mais sábia que seja, não pode vincular os juízes das instâncias inferiores, que devem julgar de acordo com cada caso que lhe é apresentado, com liberdade e independência. O prestigiado Gomes (1997, p. 199) adverte: “[…] Se o direito fosse “ciência exata”, se não tivesse como “matéria-prima” problemas humanos, que nunca são idênticos exatamente porque nenhum ser humano possui outro similar, seria razoável nutrir a expectativa de uma unificação total e absoluta na sua aplicação[…]”.

Sabemos que muitas produções legislativas são confusas, dúbias e complexas, e que, por conta disso, necessitam sempre de interpretação. Assim, o juiz tem a missão importantíssima de adequar, dentro das possibilidades interpretativas, a lei em análise aos ditames maiores do direito, como a razoabilidade e a proporcionalidade. O próprio ministro Sepúlveda Pertence, defensor fervoroso da súmula vinculante, alertou seus interlocutores sobre tal questão, ao pronunciar:

O efeito vinculante implicaria uma redução, quando não uma eliminação, da independência jurídica do juiz elevaria à paralisia da jurisprudência. Não nego seriedade a essas críticas nem riscos de sua procedência se a redisciplina e a prática do efeito vinculante não forem cercados de cuidados. (PERTENCE, 1995, apud SILVA, 1998, p. 83).

O juiz se tornará um mero repetidor de questões já sumuladas e “chancelador” de decisões. Situação inaceitável, se considerarmos que toda lei, por mais clara que pareça ser, é suscetível de interpretação. As decisões vinculantes provocarão o engessamento do direito, subjugarão os juizes e limitarão as atividades dos advogados, podendo gerar uma crise sem precedentes. Pertinente a observação que Silva (1998, p. 92) faz acerca desse assunto:

Ainda em torno da figura dos advogados, tem-se tornado lugar comum acusá-los de intentar aquilo a que chamam de ações repetitivas. Uma vez mais se está a olhar para os efeitos sem se prender à causa. Tecnicamente todas as ações, adotadas por grupos de institutos jurídicos próprios são ações repetitivas. Isto é as locações estão para as ações de despejo ou de renovação, assim como os embargos às execuções fiscais estão para as próprias execuções fiscais. Repetidos ou repetitivos são, a bem da verdade, os continuados erros e abusos que as pessoas investidas de autoridade estão a cometer. Para bem responder a esta questão, que não se perca de vista que o advogado não escolhe a demanda que deseja. Pelo contrário, só poderá exercer os pedidos de tutela jurisdicional de acordo com os instrumentos que as regras do processo dispõem. Com razão a expressão colhida do ministro do Superior Tribunal de Justiça Bueno de Souza admitindo que, exatamente por causa disso, a súmula vinculante não passaria de uma resposta burocrática para a crise da justiça. (grifo do autor).

Vale registrar que o nosso ordenamento jurídico já prevê o efeito vinculante nas decisões de mérito da ADIn e da ADC. Nas demais matérias, orientação sim, vinculação não, do contrário os juizes perderão sua independência, pois estarão previamente sujeitos àquela decisão sumulada, não sendo-lhes permitido, sequer, discutir a matéria, gerando, dessa forma, uma ingerência inaceitável à atividade do magistrado.

Conforme adverte o jurista argentino Zaffaroni (apud SILVA, 1998, p. 83): “Um poder Judiciário não é hoje concebível como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército. Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado”.

O efeito vinculante não permite ao juiz que ele adapte o direito à evolução natural da vida social, com todas as nuances dela decorrentes, uma vez que lhe impõe a orientação sobre qual deve ser a interpretação mais correta, desprezando as outras formas, muitas vezes mais justas e adequadas ao conflito.

O prestigiado Gomes (2005, p. 2) lembra o seguinte:

O instituto da súmula vinculante pertence à velha (e ultrapassada) metodologia do Direito, que era visto como um sistema jurídico coeso, compacto e seguro. Esse modelo de Direito (e de metodologia), típico de Estados autoritários, não levava em conta duas coisas: (a) a pluralidade de pensamento dentro do Estado de Direito; (b) a justiça do caso concreto. Preocupava mais a beleza do palácio do Direito (sua lógica interna), que a justiça do caso concreto.

O argumento de que o Instituto será a solução mágica para o desafogamento do Poder Judiciário, especialmente dos Tribunais Superiores, queda-se diante da possibilidade de interposição de reclamação, por aqueles que podem propor a ADIn, diretamente ao STF, toda vez que a súmula for contrariada ou indevidamente aplicada, nos termos do § 3º do art. 103-A da CF/88. Assim, esse dispositivo cria mais uma ação ou recurso, seja lá qual for a sua natureza jurídica, a ser julgado pelo STF, aumentando, cada vez mais, o volume de processos naquele Tribunal.

Outro ponto importante diz respeito à chamada remessa obrigatória por força do duplo grau de jurisdição, previsto no § 1º do art. 475 do Código de Processo Civil. A nossa estrutura processual prevê em certas circunstâncias essa possibilidade de impugnação, que, com o advento do efeito vinculante, precisa ser revisto, pois não se coaduna com seus objetivos. Portanto, são essas as desvantagens apresentadas por aqueles que são contrários ao efeito vinculante das decisões perpetradas pelo STF: a súmula vinculante extinguirá o principio do juiz natural, responsável pelo primeiro exame da causa, que fica impedido de decidir conforme a lei e o seu livre convencimento; o efeito vinculante é antidemocrático e autoritário, estabelecendo a ditadura das cúpulas judiciais, pois os juizes passarão a decidir conforme as súmulas, pouco importando se ela fará justiça ou não ao conflito posto; a súmula vinculante será um entrave para a jurisprudência, que não se renovará, cristalizando o direito, o que é inaceitável para uma ciência dinâmica, que deve estar sempre atenta às transformações sociais. Nunca é demais lembrar a equivocada decisão do STF no ano de 2004 em considerar constitucional a contribuição previdenciária dos servidores inativos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que o argumento de que o Instituto será a solução mágica para o desafogamento do Poder Judiciário, especialmente dos Tribunais Superiores, queda-se diante da possibilidade de interposição de reclamação, por aqueles que podem propor a ADIn, diretamente ao STF, toda vez que a súmula for contrariada ou indevidamente aplicada, nos termos do § 3º do art. 103-A da CF/88. Assim, esse dispositivo cria mais uma ação ou recurso, seja lá qual for a sua natureza jurídica, a ser julgado pelo STF, aumentando, cada vez mais, o volume de processos naquele Tribunal.

Temos plena convicção de que o debate a respeito do presente assunto precisa ser provocado cada vez mais, seja de que lado for – opositores ou favoráveis ao instituto -, pois só assim chegaremos a um processo de reconstrução do Poder Judiciário, um dos Poderes mais importantes do Estado.