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A Propriedade Privada

A propriedade não é absoluta, não é legítimo o possuir por possuir, e sim para o trabalho e pelo trabalho, por isso deve a propriedade ser respeitada, pelo valor de seu destino, de sua função social como quer nosso legislador.

O Preâmbulo de nossa Constituição Federal vigente declara ser o Estado “destinado a assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade…”, não figurando explicitamente a “propriedade”, um dos pilares do mundo “ocidental”. Tal vocábulo aparece primeiramente no caput do art. 5º: “garantindo-se a inviolabilidade do direito à propriedade”, repetindo no inc. XXII: “é garantido o direito a propriedade”.

Enfim, na atual Constituição Federal, o direito de propriedade é garantido (inc. XXIII, do art. 5º) dois incisos antes do estabelecimento da possibilidade de desapropriação (inc. XXIV) por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

Inc. II – propriedade privada;

Nosso ordenamento jurídico trata a propriedade de forma diferente da predominante nos séculos anteriores então baseada numa exacerbação e deturpação do individualismo e do direito de propriedade (doença que corre até os dias de hoje, óbvio), demandados pela ascensão da burguesia.

Do único ponto de vista pertinente ao bom senso, a propriedade privada não tem natureza de privilégio excludente, muito pelo contrário, sua função, no contexto universal da existência, é de dar uso, fruição individual, aos bens de destinação universal. Todos os bens destinados a todos os homens. Ninguém tem direito a propriedade absoluta, mas sim a dar eficácia a esta destinação universal através da apropriação individual.

Mas a questão da propriedade é muito mais polêmica do que merece, e o é porque toda a questão social estava centrada neste problema. O paradigma muda com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana rezado no art.1º, III da Constituição Federal Brasileira; assim o ser humano, mesmo individualmente, não tem seu valor e sentido apenas se derivado do coletivo social, como pretendem todos os sistemas e ideologias de inspiração totalitária de direita ou de esquerda.

Este reconhecimento tem suas conseqüências, e é coerente com o fato de o legislador constitucional não ter adotado de forma absoluta como modelo político-social nem o capitalismo, nem o comunismo (o capitalismo é adotado como regime de mercado/ economia não da sociedade). Ambos os sistemas propunham, no fundo, como solução de todos os problemas a indefinida satisfação de um desejo de consumo insaciável. Em harmonia com a dignidade da pessoa humana, com o caráter funcional da propriedade – que serve o homem, e não é fonte de discriminação, nem muito menos fim – está a reconhecida verdade de que ser é mais importante que ter, e o ter mais só se justifica na medida em que permite ser mais. O legislador tem uma visão mais ampla da sociedade e parece pretender o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens.

III – função social da propriedade;

Aqui aplicada na ordenação econômica o princípio já comentado acima (art. 5º, inc. XXIII). Não esqueçamos que são inocentes os argumentos quanto a impossibilidade de regrar a economia, dizendo a ela “aja assim, segundo esse princípio”. São bobos porque é óbvio que princípios são dirigidos a pessoas, e no presente caso em situações de gestão econômica.

Faz-se necessária uma digressão rápida sobre economia. Trata-se do estudo, análise ou cuidado para com o aspecto laboral e material dos homens em sociedade. Aspecto este que envolve relacionamento entre pessoas ora em situação de produção de serviços (labor) ora, de destinatários dos frutos deste trabalho, são relações trabalhistas, consumidoras, gestoras, comerciais, todas vistas sob o prisma da produção e distribuição de bens.

Assim, a economia, estudo deste aspecto da sociedade humana não prescinde do fator liberdade. Para ela, como para todos os estudos humanos (social, filosofia, direito, psicologia, arte etc.) não há um sistema de análise que, a partir da obtenção de certas informações, seja possível prever impreterivelmente atitudes conseqüentes futuras. Não existe o determinismo (partindo, sem delongas, do pressuposto da liberdade).

A economia é formada por um conjunto de inúmeras decisões humanas, algumas mais relevantes como as estatais, e portanto sujeitas a erros ou a ser motivas com má-fé (na sua minoria esperamos).

Assim como, ao menos por experiência, não podemos esperar conseqüências positivas de atitudes erradas (cometer um crime não pode frutificar um bem objetivamente; talvez possa ser um bem menor subjetivamente, tirou alguma vantagem, mas para a sociedade é um mal, tanto que em geral tem sua persecução estatal independentemente de prejuízo privado demonstrado), nem frutos bons de arvores ruins, não podemos esperar que as conseqüências econômicas do livre mercado, sejam todas boas. Num jardim com árvores podres e árvores boas, é preciso cuidado. Para esse cuidado de preservar o bem geral, e a função saudável função do comércio, serve a macro-economia.

Então, voltando da digressão, o princípio da função social da propriedade está aqui voltado especialmente (já, repedindo, já constava no art., 5º, XXIII da Constituição) para todos os que forem responsáveis por decisões que envolvem a economia nacional e para a coerente legislação sobre o assunto. Claro está que o principal destinatário desta norma é o próprio poder executivo do Estado (sob este princípio deve pautar suas decisões políticas).

A propriedade deve seguir a “primazia da destinação universal dos bens sobre a apropriação individual”; os bens naturais se destinam a toda a humanidade. O direito de propriedade, que consiste na apropriação individual, é uma forma eficaz de realizar melhor esta destinação. Através da propriedade o homem pode trabalhar, sobreviver, criar e por ela serve de meio para realização de direitos essenciais, não tem legitimidade na posse, mas na sua destinação. A propriedade, situada assim à luz deste princípio, é entendida como responsabilidade social e não como privilégio excludente: “Sobre toda a propriedade privada pesa uma hipoteca social”

A propriedade tem, conforme o bom senso, sua importância reconhecida e devidamente enquadrada; é meio, não é absoluta. Deve estar sempre associada aos direitos e às necessidades humanas, e no contexto social, ao trabalho, por ser um aspecto chave para toda questão social.

Chamamos, em geral, capital o conjunto dos meios de produção, o termo meio pode ser esclarecedor. Em capital, estão incluídos tanto os bens dados, ou naturais (independentes da intervenção humana) como o solo e as riquezas minerais, como aquelas ferramentas que são fruto do próprio trabalho e se destinam a ele, e que podemos chamar de técnica; são máquinas, projetos, métodos, softwares, indústrias, ferramentas, marcas, enfim, tudo o que pode formar o “banco de trabalho” do homem. A todo este conjunto, a que chamamos capital , aplica-se o trabalho humano, causa eficiente primária da produção, por meio do qual o homem alcança seu sustento e contribui de diversas maneiras para o bem da comunidade, da humanidade.

Este básico esclarecimento serve para poder-se entender o contexto da correta valorização da propriedade. Já podemos fazer coro com João Paulo II quando diz: “a propriedade dos meios de produção – tanto a propriedade privada como a pública ou coletiva – só é legítima na medida em que serve ao trabalho” . A propriedade serve ao trabalho tanto sendo fruto do trabalho, na medida que através dele o homem conquista seu sustento e expressa cultura, ela é estímulo e recompensa do trabalho, meio legítimo de se obtê-la, e , se destinando a ele como meio que o torna viável, eficaz e cada vez mais eficiente.

É nesse sentido que dizemos que a propriedade não é absoluta, não é legítimo o possuir por possuir, e sim para o trabalho e pelo trabalho, por isso deve a propriedade ser respeitada, pelo valor de seu destino, de sua função social como quer nosso legislador.

Chamamos trabalho a toda atividade humana (exclui-se as atividades do outros seres vivos destinadas a diretamente a preservação da vida, e também aponta-se mais um aspecto que diferencia o ser humano dessas: o trabalho) que visando a busca do próprio sustento, contribui para o progresso da técnica e da ciência e, principalmente para a elevação cultural e moral da sociedade; manisfesta-se o homem, nesta atividade, de forma global no sentido de que toca seus aspectos naturais da individualidade, da sociabilidade e da espiritualidade.

As atividades concretas são de diversidade riquíssima, podendo ser mais intelectuais ou mais manuais. A sociabilidade natural humana, conceito que não vamos discutir pois está implicitamente aceita pelo nosso ordenamento jurídico como, inclusive, única capaz de justificar de forma razoável a existência do Estado, implica que o homem se relaciona por necessidade e para dar vazão a sua abundância de riquezas; e natural não significa o “sem esforço” já que a vontade, a persecução de objetivos, a atração pelo bem e pelos bens, a “civilizacionar-se”, o superar-se… são integrantes da natureza humana. É fácil constatar que o trabalho é um modo especial de relacionar-se socialmente.

Em harmonia com o princípio da dignidade humana, o trabalho deve ser visto sob um prisma pessoal, sendo incompatível com a sua valorização olhá-lo como mais um fator de produção, como se exclusivamente o trabalhador (enfaticamente o operário industrial) vendesse sua atividade como mercadoria a um “dador de trabalho”, que é possuidor de capital – meios de produção, instrumentos de trabalho.

Este pseudopensamento, típico de economicismo materialista, dá exclusiva importância ao aspecto objetivo do trabalho, em detrimento do aspecto subjetivo: o homem é instrumento de produção.

No entanto, à luz da análise da realidade fundamental de todo o processo econômico e, primeiro que tudo, das estruturas de produção — qual é, justamente, o trabalho — importa reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho — ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção.

É evidente que estas inferências só são pertinentes em função do estabelecido conflito “material” e ideológico (principalmente a partir do final do século XIX) entre capital e trabalho; entre os possuidores dos meios de produção (proprietários, empresários) e a numerosa multidão privada de tais meios e que participava do processo de produção mediante exclusivamente o seu trabalho; entre o liberalismo e o marxismo.

Dizer que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano significa dar prioridade ao trabalho em confronto com o “capital”. Esta assertiva cabe, não só no prisma antropológico, mas no econômico, diz respeito ao próprio processo de produção no qual, o trabalho é sempre uma “causa eficiente primária”, e o capital – conjunto dos meios de produção – é instrumento (causa instrumental).

Este instrumento, o capital, não pode servir ao homem senão mediante o trabalho, assim estão ligados os problemas do trabalho e da propriedade. Pelo trabalho, e só através dele, o homem aproveita os recursos naturais, e, para frutificá-lo apossa-se de pequenas porções destes bens assentando assim seu “banco” de trabalho; apropria-se mediante o trabalho e para depois ter trabalho.

Fica claro que no conceito de capital entrara também, além dos recursos da natureza postos à disposição do homem, também aquele conjunto de meios pelos quais o homem, transformando os recursos naturais à medida das suas necessidade, “cria” e se torna fruto do patrimônio histórico do trabalho humano. Depois de um longo período histórico de “incubação na vida prática” houve uma ruptura desta visão – que coerentemente salvaguarda o princípio do primado da pessoa sobre as coisas – culminando na contraposição entre capital e trabalho, como se fossem dois fatores de produção quase anônimos. Na maneira materialista de ver o problema consistiu o erro do “economicismo” que considera exclusivamente a finalidade econômica do trabalho, tudo embasado na convicção do primado e da superioridade daquilo que é material. O materialismo dialético é mais tagarela e coloca o trabalho humano e o homem como uma espécie de resultante das relações econômicas e do modo de produção de determinada época. O que se pretende, com a “valorização do trabalho humano” é romper com a visão e com a prática que contrapõe trabalho e capital, que chegou ao absurdo da exploração do trabalho pelo “capital”. Os bens, a propriedade não pode ser possuída contra o trabalho, nem mesmo possuída por possuir. Sua legitimidade, em conformidade ao ordenamento jurídico, está exclusivamente embasada na sua função social, que se realiza, primariamente, exclusivamente no contexto laboral: a propriedade para o trabalho e pelo trabalho.