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Presidente do STJ autoriza aborto de feto com hidranencefalia em Campinas (SP)

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal, concedeu nessa sexta-feira (23) liminar em habeas-corpus para que os médicos procedam a interrupção da gravidez de Michelly Chistina de Freitas, 23 anos, porque o fato de 26 semanas sofre de hidranencefalia. O pedido feito pela Procuradoria da Assistência Judiciária, do município de Campinas, Estado de São Paulo, alegou, entre outras questões, a existência de risco de vida da gestante.

“Nesse contexto, certo é que a gestação infrutífera ora impugnada trará riscos à própria saúde da gestante, que poderá sofrer por toda sua vida dos danos, senão os físicos, dos prejuízos psicológicos advindos do fato de carregar nove meses criança em seu ventre fadada ao fracasso,” diz o ministro na decisão.

E continuou: “Por saúde, a própria Organização Mundial de Saúde pontifica que há de se entender o bem estar completo da pessoa humana, não só físico, mas também psicológico. E aqui o gravame é duplo.”

“E nem se diga que está se olvidando do direito à vida, garantia constitucional de todas as pessoas, assim entendidas todas aquelas já concebidas, na forma da reserva civil de seus direitos. É que, no caso dos autos, essa dita vida não se realiza, ainda que tomados todos os cuidados para preservação da mesma, eis que o laudo é categórico ao atestar a ausência de “sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência de integridade dos tecidos cerebrais”.”, manifestou o presidente do STJ.

Para o ministro, ainda na decisão, “não autorizar a conduta médica seria negar a própria aplicação da lei penal, eis que do ponto de vista criminal a realização do tipo previsto no art. 125 do Código Repressor requer dolo específico para interrupção da vida injustificada ou não-naturais, como bem acentua Alberto Silva Franco, em sua obra “Aborto por indicação Eugênica”, Revista dos Tribunais, 1992, p. 90 :”(…) o preenchimento da área de significado desse dado compositivo da figura típica, deve ser buscado em campo extra-penal, na medicina, ou mais especificamente na biologia, na parte em que cuida do processo de formação da vida e das causas de sua interrupção.”

E concluiu: “Portanto, plenamente justificada a interrupção da gestação uma vez que coerente com os preceitos de proteção à vida e à saúde, garantidas pela própria Carta Maior.Assim, defiro o pedido para que se proceda a interrupção da gravidez ora questionada de Michelly Christina de Freitas.”

Interromper a gravidez

No exame pré-natal realizado no Centro de Atenção Integrada à Saúde da Mulher, da Universidade Estadual de Campinas (SP) foi diagnosticado que o feto sofre de patologia letal denominada hidranencefalia. A partir dessa constatação, Michelly iniciou o périplo para obter autorização do Poder Judiciário para que os médicos procedessem o aborto do feto.

De imediato, houve recurso à Primeira Vara do Júri de Campinas, que foi negado pela juíza substituta Luciene Pontirolli Branco. Em seguida, a Procuradoria da Assistência Judiciária do Estado de São Paulo impetrou habeas-corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). O desembargador Jarbas João Coimbra Manzzoni, presidente da Seção Criminal do TJ-SP, negou a liminar sob alegação de que “não pode ser acolhido porque tem natureza satisfativa, e sua concessão ensejaria indevida antecipação do mérito do ‘writ’. Nesse sentir, uma vez que não se divisa flagrante ilegalidade, hábil a justificar a concessão da medida pleiteada.”

Na mesma decisão, o desembargador Jarbas Manzzoni disse que “caberá à Turma julgadora a solução da questão em toda a sua extensão”. Diante disso, a Procuradoria recorreu ao STJ com o mesmo pedido. Foram anexados laudos médico e psicológico que atestam a deformidade do feto e a condição de saúde da gestante. Após a análise dos documentos apresentados ao pedido de habeas-corpus, a liminar foi concedida.

Roberto Cordeiro(61) 8165 8754

A seguir a íntegra de decisão do presidente do STJ, ministro Edson Vidigal:

HABEAS CORPUS Nº 51.982 – SP (2005/0215644-4)

IMPETRANTE : SILVIO ARTUR DIAS DA SILVA – PROCURADORIA DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIAIMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO PACIENTE : MICHELLY CHRISTINA DE FREITAS

DECISÃO

Grávida de vinte e seis semanas, Michelly Christina de Freitas requereu ao Juiz de Direito da Comarca de Campinas/SP autorização para interrupção de sua gravidez, após descobrir que seu feto sofre de patologia letal denominada hidrananencefalia.

Julgado improcedente o pedido, impetrou, a Procuradoria da Assistência Judiciária do Estado de São Paulo, Habeas Corpus no Tribunal de Justiça Estadual, o qual, em 16/12/05, negou o pedido liminar ante seu caráter satisfativo – fl. 56.

Vem então a Procuradoria a esta Corte com igual pedido, apresentando laudos médico e psicológico que atestam a deformidade do feto e a condição de saúde da gestante.

Pondera que “o direito penal brasileiro permite a realização do aborto apenas em duas oportunidades, não obstante possa ter o feto vida que se realizará plenamente fora do útero: quando a gravidez resulta de estupro ou quando apresenta risco de vida para mãe; em ambas as situações, prevalecem os interesses da mulher sobre o bem vida do feto” – fl. 08.

Por isso requer, liminarmente, a concessão da ordem a fim de que Michelly Christina de Freitas tenha o direito de interromper sua gravidez.

Decido.

Tem este Superior Tribunal de Justiça entendimento reiterado de que não se defere liminar contra o indeferimento de medida idêntica pela Corte local, consoante verbete sumulado nº 691 do Supremo Tribunal Federal, o qual afirma não competir àquela Corte “conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão de relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere liminar”.

Ressalva-se a possibilidade de impetração de habeas corpus em casos tais somente na hipótese de flagrante ilegalidade ou de decisão teratológica. A propósito:

“PROCESSO CIVIL – HABEAS CORPUS – LIMINAR – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BUSCA E APREENSÃO DE AUTOMÓVEL – CONVERSÃO EM DEPÓSITO – PRISÃO CIVIL – WRIT CONTRA ATO DE DESEMBARGADOR – CABIMENTO – CONCESSÃO DA ORDEM.1 – Quando manifesta a ilegalidade da decisão, tem-se admitido o processamento do writ contra decisão liminar de relator em habeas corpus anterior, evitando, destarte, a ocorrência ou manutenção da coação ilegal (v.g. HC 35.221/GO, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, DJ 25.10.2004; HC 13.878/DF, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ 11.12.2000; HC 15.782/MA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, DJU de 23.04.2001).(…)” (HC 38125, Rel Min. Jorge Scartezzini, DJ de 25.05.05).

Recentemente, inclusive, esclareceu a Eg. Corte, sob a relatoria do Ministro Carlos Veloso, no HC 86.864-9/SP, que “o enunciado 691 não impede o conhecimento do habeas corpus, se evidenciado flagrante constrangimento ilegal”.

Não há, prima facie, a menor dúvida de que estamos aqui diante de um manifesto constrangimento ilegal. Portanto, cabível a análise do presente pedido. Passo ao mérito.

Tem-se aqui situação difícil e singular na qual uma gestante pleitea o direito de interromper sua gravidez, salvaguardando seu direito latu sensu à liberdade, à intimidade e a sua própria integridade física.

Vale ressaltar que trata-se de gravidez comprovadamente infrutífera segundo o laudo da Coordenadoria de Medicina Fetal da Unicamp, acostado à fl. 11, que peremptoriamente atesta que “essa situação, considerada letal para o feto, (..) pode cursar com óbito intra-uterino ou atingir idade gestacional de termo. A gravidez quando complicada por aumento do volume do líquido amniótico está sujeita ao desenvolvimento de hipertensão arterial materna e alterações da mecânica do trabalho de parto. Não há na literatura médica relato de sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência de integridade dos tecidos cerebrais” – fl. 11. (grifo nosso)

E mais, consoante o mesmo laudo, existe um tópico preponderante que associado à própria deformidade do feto torna a causa sustentável do ponto de vista normativo e constitucional, qual seja, a possibilidade de dano para gestante.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal enfrentou questão similar (HC 84025), no caso de anencefalia fetal, hipótese em que sequer havia dano físico para a gestante, senão apenas a própria inviabilidade do feto.

Situação aqui diversa e mais grave, pois além da impossibilidade da vida extra-uterina do feto, conforme atestado pelo referido laudo, verifica-se a possibilidade de dano gestacional, fato esse sequer cogitado na decisão impugnada, decorrendo daí sua manifesta ilegalidade.

Isso porque, é a própria Constituição Federal que assegura a todas as pessoas a incolumidade de seu estado físico, através das salvaguardas inerentes ao direito de saúde, assim entendida segundo a necessária interpretação sistêmica. Veja-se:

Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Nesse contexto, certo é que a gestação infrutífera ora impugnada trará riscos à própria saúde da gestante, que poderá sofrer por toda sua vida dos danos, senão os físicos, dos prejuízos psicológicos advindos do fato de carregar nove meses criança em seu ventre fadada ao fracasso.

Por saúde, a própria Organização Mundial de Saúde pontifica que há de se entender o bem estar completo da pessoa humana, não só físico, mas também psicológico. E aqui o gravame é duplo.

E nem se diga que está se olvidando do direito à vida, garantia constitucional de todas as pessoas, assim entendidas todas aquelas já concebidas, na forma da reserva civil de seus direitos. É que, no caso dos autos, essa dita vida não se realiza, ainda que tomados todos os cuidados para preservação da mesma, eis que o laudo é categórico ao atestar a ausência de “sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência de integridade dos tecidos cerebrais”.

Não autorizar a conduta médica seria negar a própria aplicação da lei penal, eis que do ponto de vista criminal a realização do tipo previsto no art. 125 do Código Repressor requer dolo específico para interrupção da vida injustificada ou não-naturais, como bem acentua Alberto Silva Franco, em sua obra “Aborto por indicação Eugênica”, Revista dos Tribunais, 1992, p. 90 :

“(…) o preenchimento da área de significado desse dado compositivo da figura típica, deve ser buscado em campo extra-penal, na medicina, ou mais especificamente na biologia, na parte em que cuida do processo de formação da vida e das causas de sua interrupção.”

Portanto, plenamente justificada a interrupção da gestação uma vez que coerente com os preceitos de proteção à vida e à saúde, garantidas pela própria Carta Maior.

Assim, defiro o pedido para que se proceda a interrupção da gravidez ora questionada de MICHELLY CHRISTINA DE FREITAS.

Comunique-se.Publique-se.Intime-se.

Brasília (DF), 22 de dezembro de 2005.

MINISTRO EDSON VIDIGAL Presidente