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Possibilidade do AFT exigir a apresentação de fitas de caixas de instituições bancárias

Ab initio, antes de se adentrar no âmago da questão, deve-se fazer uma breve explicação acerca do direito à privacidade, bem como em relação à questão do sigilo bancário, para somente, em seguida, desenvolver os aspectos relevantes sobre o tema.

De antemão, afigura-se de elevada importância definir a palavra privacidade, haja vista que esta não deve ser encarada como aquilo que deve ser escondido, o que é secreto ou aquilo que as pessoas não podem saber. Privacidade é um dos mais importantes direitos civis, posto que demonstra nossa autonomia, integridade e liberdade.

Não se trata, deste modo, de fechar a porta das casas para ali dentro vender drogas ou cometer demais ilicitudes, importando no direito que as pessoas têm de controlar quais detalhes de suas vidas devem permanecer resguardados e quais devem ser expostos.

A privacidade engloba diferentes aspectos: há a privacidade nas informações, que envolve o estabelecimento de regras para a circulação de dados; a corporal, que diz respeito à proteção física dos corpos contra técnicas invasivas como testes genéticos e de novos medicamentos; nas comunicações, abrangendo a intimidade nas cartas, telefonemas e outros meios e a territorial, que limita a intrusão no ambiente doméstico ou de trabalho.

Dentre os direitos humanos, o direito à privacidade é um dos de mais complexa definição conceitual e abrangência, pois representa o Direito a estar só ou o direito a ser deixado em paz e até mesmo o direito de escolher o que deve ser exposto aos outros. Também pode ser entendida como a faculdade que cada indivíduo tem de barrar a intromissão de estranhos em sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um.

O Código Civil de 2002 inovou ao disciplinar a privacidade no diploma privado. Contudo, a matéria não se esgota nessa esfera jurídica, pois constitui igualmente um direito humano e fundamental, protegido pela Constituição, assim como faz parte dos direitos da personalidade. Ademais, deve-se destacar que a legislação penal e a administrativa também apresenta dispositivos sobre o assunto.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 acompanhou a tendência internacional de incluir na relação dos direitos fundamentais a proteção à intimidade e à vida privada. Anteriormente a ela não havia disposição constitucional no Brasil acerca da matéria, mencionada apenas de modo implícito. O seu reconhecimento existia apenas em documentos internacionais, como na Declaração dos Direitos Humanos. Consta no artigo 5º, inciso X da Carta Magna:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…]X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Percebe-se, de imediato, que a Constituição procedeu a uma diferenciação entre intimidade e vida privada. Pode-se presumir que o constituinte utilizou a expressão vida privada em sentido estrito, ou seja, como uma das esferas da intimidade.

Ressalte-se que vários outros dispositivos constitucionais tratam separadamente de aspectos que estariam situados no âmbito da privacidade como, por exemplo: a proibição de penas cruéis ou invasivas do corpo e da dignidade (inc. III e XLIII); a proteção da imagem (inc. V); a liberdade de pensamento, de consciência e de crença (inc. IV e VI); a inviolabilidade da casa (inc. XI); o sigilo das correspondências e das comunicações (inc. XII); o direito de autor (inc. XXVII); o respeito à integridade física e moral do preso (inc. XLIX); o direito de conhecer e retificar informações pessoais (inc. XXXIII e LXXII); a escusa de consciência (inc. VIII).

Explicitamente prescrito na Constituição como direito fundamental, os direitos à intimidade e à vida privada passam a gozar de regime jurídico especial, tendo a garantia de “cláusulas pétreas” (CF, art. 60, par. 4º, IV); aplicação imediata (CF, art. 5º, par. 1º) e a proibição de violar o núcleo essencial.

Desta feita, percebe-se que o direito à privacidade possui duplo caráter: além de ser um direito fundamental (com sua especial proteção pelo ordenamento jurídico), é, ao mesmo tempo, um dos direito da personalidade.

Os direitos personalíssimos são componentes indissociáveis da personalidade, sem os quais a pessoa não existiria em sua plenitude. Trata-se de defender bens inerentes à própria existência, elementos constitutivos da personalidade do sujeito. São direitos subjetivos, ou seja, a pessoa defende sua personalidade, e não seu patrimônio, exigindo um comportamento negativo dos demais.

Ademais, esses direitos são indisponíveis (insuscetíveis de alienação), via de regra, pois essa sua característica é relativa. São igualmente inatos (originários da pessoa e dela não podem ser retirados, sem eles não se configura a personalidade), absolutos (oponíveis erga omnes, eficazes contra todos), extrapatrimoniais (não avaliáveis economicamente), intransmissíveis (não podem ser transferidos a esfera jurídica de outrem), imprescritíveis (não se extinguem pelo uso, nem pela inércia), impenhoráveis, vitalícios (terminam com óbito do autor, pois são indispensáveis enquanto ele viver), irrenunciáveis e ilimitados (pois não se pode imaginar um número fechado de direitos inerentes à pessoa). A renomada Maria Helena Diniz reconhece nesses direitos:

[…] uma dupla dimensão: a axiológica, pela qual se materializam os valores fundamentais da pessoa, individual ou socialmente considerada, e a objetiva, pela qual consistem em direitos assegurados legal e constitucionalmente, vindo a restringir a atividade dos três poderes, que deverão protegê-los contra quaisquer abusos, solucionando problemas graves que possam advir com o progresso tecnológico, p. ex., conciliando a liberdade individual com a social.

Na classificação doutrinária dos direitos da personalidade, na qual se considera o aspecto fundamental da personalidade que é objeto de tutela jurídica, a privacidade, juntamente com a liberdade civil, política e religiosa, a honra, o recato e outros, enquadra-se na defesa da integridade moral.

A integridade física abrange, por sua vez, a vida, o próprio corpo vivo ou morto, as partes separadas do corpo, etc. Por derradeiro, estão incluídas na defesa da integridade intelectual a liberdade de pensamento, a autoria científica, artística e literária, entre outros.

Com base na explanação acima, já se faz possível uma observação fundamental para a correta conceituação deste instituto: o de que ele não representa o mesmo para o indivíduo e para o banco, posto que, para o primeiro, trata-se de um direito e, para o segundo, de uma obrigação.

Entende-se por sigilo bancário como sendo a obrigação que têm os bancos de não revelar, salvo justa causa, as informações que venham a obter em virtude de sua atividade profissional.

A concepção do sigilo bancário no âmbito do direito à intimidade e à privacidade visa garantir ao homem o mínimo capaz para que lhe seja assegurada a sua condição humana, protegendo-o das ingerências alheias.

Os tribunais superiores de nosso país vêm reiteradamente decidindo pela inclusão do sigilo bancário no rol dos direitos da personalidade, como derivado do direito à privacidade, senão vejamos:

SIGILO BANCÁRIO. DIREITO À PRIVACIDADE DO CIDADÃO. QUEBRA DO SIGILO. REQUISITOS LEGAIS. RIGOROSA OBSERVÂNCIA. A ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário, em situações excepcionais. Implicando, entretanto, na restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar a necessidade das informações solicitadas, com estrito cumprimento das condições legais autorizadoras. (STJ – Resp. 124.272/RO – Rel. Min. Hélio Mosimann – J. em 11.12.1997 – DJ 02.02.1998 – BIJ 174/ 13.631)

De qualquer sorte, deve-se registrar que o sigilo bancário importa em uma derivação do direito à intimidade e à vida privada, em razão de ser possível estabelecer o panorama sobre a vida de um indivíduo através de simples análise de seus dados financeiros.

Um simples extrato de conta corrente ou cartão de crédito se mostra capaz de revelar importantes informações sobre a vida de um cidadão, tais como hábitos de consumo, controle financeiro, situação econômica, relações extramatrimoniais e até mesmo estado emocional, haja vista não serem poucas as vezes em que uma situação psicológica ruim resta refletida nos seus gastos pessoais. Carlos Henrique Abrão considera o sigilo bancário como:

técnica de captação, através da qual o banqueiro, (ou qualquer outro profissional do mercado financeiro) em benefício do cliente, obriga-se a não divulgar fatos e atos concernentes às operações financeiras a cujo dados teve acesso em razão de exercício profissional.

Destaque-se o entendimento do Ministro Ives Gandra da Silva Martins:

O sigilo bancário ampara-se nos incisos X e XII do art. 5º da CF/88, identificando-se com o sigilo de dados; afirma que, tendo a CF/88 flexibilizado apenas a violação de comunicações telefônicas, nem mesmo a autoridade judiciária poderia determinar a violação daqueles dados. Todavia, interpretando-se possível a violação, deve dar-se apenas através de autorização judicial e, sendo garantia derivada de cláusula pétrea, não é possível modificá-la através de Lei Complementar, estendendo poderes ao Fisco 33 e ao Ministério Público para tal ato.

Desta maneira, resta absolutamente claro que a exposição de dados pessoais dos clientes, que permaneciam em sigilo, significa muito mais que simples fiscalização, haja vista que expõe todos detalhes de sua vida.

Uma vez superada a discussão acerca do direito à privacidade, bem como sobre o sigilo bancário, deve-se passar a análise dos dispositivos que devem permitir ou não ao Auditor Fiscal do Trabalho o acesso a toda e qualquer informação e documentos em uma fiscalização de multa trabalhista. Neste azo, faz-se mister a transcrição do art. 630 da CLT, senão vejamos:

Art. 630. Nenhum Agente da Inspeção do Trabalho poderá exercer as atribuições do seu cargo sem exibir a carteira de identidade fiscal dos Agentes da Inspeção do Trabalho devidamente autenticada, fornecida pela autoridade competente.[…]§ 3º. O Agente da Inspeção do Trabalho terá livre acesso a todas as dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista, sendo as empresas, por seus dirigentes ou prepostos, obrigadas a prestar-lhe os esclarecimentos necessários ao desempenho de suas atribuições legais e a exibir-lhe, quando exigidos, quaisquer documentos que digam respeito ao fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.

Neste mesmo sentir, oportuno trazer à baila o art. 14 do Decreto lei nº 4552/2002, note-se:

Art. 14. Os empregadores, tomadores e intermediadores de serviços, empresas, instituições, associações, órgãos e entidades de qualquer natureza ou finalidade são sujeitos à inspeção do trabalho e ficam, pessoalmente ou por seus prepostos ou representantes legais obrigados a franquear, aos auditores-fiscais do trabalho, o acesso aos estabelecimentos, respectivas dependências e locais de trabalho, bem como exibir os documentos e materiais solicitados para fins de inspeção do trabalho.

Estes dispositivos acima elencados são os que conferem poderes ao auditor fiscal do trabalho (AFT) para fiscalizar os empregadores, garantindo, portanto, a manutenção do interesse público em verificar as relações de trabalho e as condições de cada empregado.

O Auditor do trabalho deve ter acesso a documentação comprobatória de relação de emprego, o que inclui livro de registro de empregado, Caged, controle de jornada de trabalho, Contratos de Trabalho e CTPSs, depósitos de FGTS, comprovantes de pagamento de férias, dentre outros.

Logo, a Lei não há referência a que tipo de documentação o AFT poderá ter acesso, haja vista que existem documentos de cunho personalíssimo do empregador, cuja existência não sirva especificamente para atestar pacto laboral ou condições de jornada de trabalho.

O cerne da questão reside justamente no fato de quando o AFT necessita de documentos não convencionais para efetuar a fiscalização, tendo em vista que somente esta documentação poderá indicar se os direitos trabalhistas estão sendo cumpridos ou não, ou seja, se o empregado está gozando de suas prerrogativas ou não.

No presente trabalho, deve-se abordar a fiscalização do AFT em um banco, ocasião em que o mesmo requer a apresentação de documentação não convencional, cujo acesso somente pertence ao banco e ao cliente.

Com efeito, o auditor fiscal do trabalho, efetuando fiscalização de jornada de trabalho de empregados bancários, exige a apresentação das fitas do caixa, argumentando que esta é a única maneira de se constatar a existência de sobrejornada destes bancários, todavia este não é um documento específico de fiscalização de trabalho, além de ser um documento de cunho privativo.

O aludido documento também está protegido contra a publicização porque atesta situação íntima e privada de clientes do estabelecimento, ou seja, suas informações não podem ser repassadas a terceiros sem autorização judicial, sob pena de ser configurado como ato danoso.

Desta feita, na prática ocorre de os bancos recusarem-se a apresentar as citadas fitas de caixa, alegando a proteção ao sigilo bancário, que é garantido por Lei, argumentando, ainda, que a apresentação desta documentação somente poderá feita mediante ordem judicial. Em contrapartida, o auditor fiscal do trabalho entende que possui acesso a toda a documentação que possa interferir na esfera trabalhista. Logo, o AFT, havendo a negativa do banco, costuma autuar a empresa, argumentando embaraço à fiscalização.

Notadamente, registre-se que, de fato, estaria o auditor fiscal do trabalho objetivando, de certo modo, a quebra do sigilo bancário sem ordem judicial, uma vez que objetiva ter acesso a informações de cunho personalíssimo de clientes do estabelecimento, ou seja, o AFT estará violando o direito à intimidade e à privacidade do cliente do banco, que é terceiro estranho à fiscalização que esta ocorrendo.

Assim sendo, não pode o AFT requerer a apresentação deste documento e, havendo negativa na apresentação, autuar o estabelecimento bancário por embaraço à fiscalização, sob pena de estar violando o direito constitucional de privacidade de informações acerca dos clientes do banco.

Demais disso, para que ocorra a autorização da quebra de sigilo bancário, deve-se estar diante de relevante interesse público e fato configurador, ao menos em tese, de grave ilicitude. A referida autorização advém de determinação judicial que confere ao auditor fiscal do trabalho o acesso a esta documentação.

Isto posto, conclui-se que o AFT não poderá ter acesso as fitas de caixa dos bancos, mesmo que seja para fins de fiscalização do trabalho, sob pena de se estar violando o direito à privacidade dos clientes do estabelecimento bancário, bem como quebrando sigilo bancário, a não ser que auditor esteja munido de ordem judicial para a exibição desta documentação.