Press "Enter" to skip to content

Maus Tratos Lato Sensu e Stricto Sensu

As relações domésticas eram orientadas com muito rigor, no início da Civilização. Na Antiguidade e no Direito Romano, o Pater Famílias tinha direito ilimitado sobre as pessoas dos filhos, não existindo, assim, o crime de maus-tratos.

Após transformações religiosas, econômicas e sociais ocorridas através dos séculos, foi no Brasil implantado o Código de Menores de 1927, que inseriu os abusos corretivos na legislação criminal, quando praticados contra menores de 18 anos.

Atualmente, o Código Penal de 1940, com as reformas que lhe são posteriores, em seu art.136, tipifica os maus-tratos nos termos :

Art 136: Expor a perigo a vida ou saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

Julio Fabbrini Mirabete explica que no crime de maus-tratos a conduta típica é expor, palavra que abrange privar, sujeitar, e abusar:

A conduta típica é expor a perigo a vida ou saúde da vítima pelo abuso voluntário do agente, que deve exercer sua autoridade de poder de correção e disciplina com prudência e moderação.

Os bens jurídicos resguardados neste crime são a vida e a saúde da pessoa humana, ou melhor, a integridade físiopsíquica do ser humano que está sob autoridade, guarda ou vigilância para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia.

O sujeito ativo é aquele que exerce autoridade, guarda ou vigilância para fins de educação (no sentido amplo da palavra, para a melhoria da pessoa que aprende, tida como educação moral ou doméstica), ensino, tratamento ou custódia. Assim, é um crime próprio, que somente pode ser cometido por aquele que tem o poder de exercício das ações supracitadas. Geralmente, são sujeitos ativos deste crime os pais, tutores, curadores, enfermeiros, carcereiros, professores, diretores de instituição de ensino, etc.

Sujeito passivo é aquele que se encontra em estado de subordinação para fins de ensino, educação, tratamento e custódia.

Assim, privar a criança e o adolescente de alimentação, de cuidados indispensáveis, sujeitá-las a trabalho excessivo ou inadequado, e abusar dos meios corretivos e disciplinares constitui crime de maus-tatos, de acordo com a norma material penal vigente.

Contudo, o presente estudo trata de maus tratos em um sentido mais amplo, em lato sensu, abrangendo não somente as condutas que tipificam o crime do artigo 136 do Código Penal, mas também todas as condutas que ultrapassam o exercício regular do poder familiar, tais como a tortura, a ameaça, a coação moral irresistível, o abandono de incapaz, entre tantas outras.

Nesta monografia defende-se que a expressão “maus tratos” importa na violação de dever de cuidado, que é o poder-dever dos pais em relação às pessoas dos filhos.

Portanto, os maus tratos aqui referidos não são somente aqueles do Código Penal, mas também, se refere ao significado semântico da palavra “maltratar”, através do Minidicionário da Língua Portuguesa de Silveira Bueno, de tratar mal; insultar; ultrajar; vexar; danificar; estragar; lesar fisicamente; mutilar; bater; açoitar.

Melhor definição dos maus tratos em sentido amplo traz Gustavo Ferraz de Campos Monaco , quando diz que maus tratos seriam o insucesso na garantia do bem – estar material e psicológico da criança, necessário ao seu desenvolvimento saudável e harmônico.

Estes maus tratos abarcam aqueles tipificados no Código Penal, e deixam a sua abrangência ilimitada, podendo ser constituído por qualquer atuação contrária ao direito, qualquer atuação ou omissão que permita a ingerência do Estado no seio familiar a ponto de determinar a suspensão ou perda do poder familiar.

Ao dividir os maus tratos contra a criança e o adolescente em dois grandes grupos: os que vão de encontro à liberdade sexual, e os que vão de encontro à liberdade fisiopsíquica, Gustavo Ferraz de Campos Monaco, mostra que há uma maior preocupação quando há o estabelecimento de uma conotação sexual lucrativa.

A violência sexual se subdivide em outros dois grupos: um grupo se compõe da violência propriamente dita, aquela que obriga a criança e adolescente a manter contato sexual de qualquer natureza, coagido fisicamente ou não, e outro grupo que envolve o lucro, tal como a prostituição infantil, o turismo sexual infanto-juvenil e a pornografia infantil vinculada em diferentes meios de comunicação.

Ambos os grupos são de exploração sexual infantil, porém, geralmente, é no primeiro grupo que se encontra aquele que detém o poder familiar como agressor. É neste primeiro grupo que há a dificuldade de atuação jurisdicional pelo baixo controle da sociedade.

Os personagens sociais não exercem o controle necessário quando presenciam a violência sexual doméstica ou qualquer outra violência fisiopsíquica contra a criança e o adolescente, deixando de notificar as autoridades competentes, mas demonstram grande repulsa quando se debatem com a violência sexual do segundo subgrupo, ignorando que esta decorre daquela, ou seja, para a criança ou o adolescente chegar a se envolver com a prostituição, com a exploração sexual lucrativa de qualquer tipo é porque ela já passou por uma experiência muito mais brutal: a exploração sexual e os maus tratos dentro de casa.

Não só a exploração sexual infanto-juvenil integra os maus tratos em sentido amplo que ensejam a suspensão ou perda do poder familiar. Também crimes como o abandono de incapaz, o constrangimento ilegal e tortura compõem o que este estudo defende por maus tratos lato sensu, mas não completam o seu significado.

O Código Penal atual , no seu art. 133 assim dispõe sobre o abandono de incapaz:

Art. 133: Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono.

A conduta típica é abandonar a vítima, deixá-la em desamparo, sem meios de se proteger. Comete este crime aquele que tem a obrigação de zelar pela vítima, tratando, portanto, de crime próprio. Esta obrigação pode ser legal ou convencional, mas a pena é aumentada se o agressor for o ascendente, descendente, cônjuge irmão, tutor ou curador.

O abandono de incapaz é um crime que deve ensejar a suspensão ou perda do poder familiar, assim como quaisquer condutas que integram os maus tratos lato sensu, ou seja, quaisquer condutas contrárias ao direito.

Não há conduta mais contrária ao direito do que a tortura, porque sua atuação agride as integridades física e psíquica do ofendido. A tortura é tipificada em lei própria, a Lei 9.455 de 1997 , que dispõe:

Art. 1º: Constitui o crime de tortura: II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplica castigo pessoal ou medida de caráter preventivo; § 2º – aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

A Lei 9.455/97 inova ao condenar também aquele que deve zelar pelo ofendido, mas permite que a agressão aconteça, omitindo-se do dever de cuidado.

Também assim deve ocorrer com o constrangimento ilegal que é definido pelo Código Penal como:

Art.146: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.

Trata-se de um crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa, e contra qualquer pessoa, contanto que esta tenha condições de querer, vez que a conduta típica é coagir, compelir, forçar a vítima à prática de um ato ou uma abstenção , ou seja, fazer ou não fazer algo, violando-se a sua vontade. Pode o agente utilizar-se de ameaça ou qualquer outro meio para o constrangimento.

Assim, não só comete maus tratos aquele que abusa fisicamente do menor, mas também aquele que abusa de sua psique, obrigando-o a calar-se.

Os crimes acima descritos ilustram uma infinidade de possibilidades de se atuar contrariamente ao direito, no exercício de seu poder-dever familiar, incidindo na atuação ilícita dos os maus tratos em sentido amplo, e mais do que as sanções penais, essas condutas devem culminar em sanções civis, tais como a perda ou a suspensão do poder familiar do atuante e do omisso.