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Visão constitucional de Bem Jurídico

Após a Revolução Francesa e a difusão de seus ideais democráticos, as sociedades modernas construíram seus textos constitucionais alicerçados sobre os três pilares reivindicatórios que esse movimento preconizou: a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que juntos traduzem o verdadeiro sentido da expressão dignidade da pessoa humana.

O Estado brasileiro, através de sua Carta Magna, abarcou como valores fundamentais a liberdade e a dignidade, por serem pertencentes à natureza do homem. Portanto, têm-se esses dois princípios na base da pirâmide de tutela dos bens jurídicos constitucionais, situados num grau valorativo superior a outros bens. Não é à toa que o legislador penal, para garantir a tutela e a preservação destes e de outros bens jurídicos, procurou ceifar a liberdade de todos aqueles que transgredissem seu ordenamento criminal, isto é, por lesar um bem jurídico ele priva o indivíduo de outro bem constitucionalmente considerado de maior importância, objeto de lutas em toda a história da humanidade, qual seja a tão aclamada liberdade.

A atual Carta Constitucional Brasileira (BRASIL, 1988), logo em seu preâmbulo, impera quepara instituir de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

Assim, como esposado no preâmbulo da Carta Magna, o legislador infraconstitucional fica impedido de penalizar qualquer ato arbitrariamente. Ele é limitado pela orientação dos direitos assegurados na Constituição, criminalizando aquelas condutas que confrontem com os bens albergados pela norma maior. Pèrez Lunõ (ANO apud PRADO, 1997, 69), elucida melhor essa questão, anunciando que os bens agasalhados pela Constituição funcionam como um roteiroFundamentador para a interpretação de todo ordenamento jurídico; de postulado-guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição e de critério para avaliar a legitimidade das variadas manifestações do sistema de legalidade.

Desta forma, ratificando o que foi dito acima, o amparo do Direto Penal regra-se por um limite de domínio constitucional, determinando os bens a serem protegidos por uma valoração decorrente de um contexto histórico, político, social, econômico e cultural. A tipificação repressiva deve seguir essa especificação de forma interpretativa e restritiva, não rompendo as barreiras que a legislação superior positivou. Ela impôs bloqueios para que o Estado e o legislador ordinário não punam o indivíduo de forma incompatível ao que a lei constitucional preconizou. Assim a norma fundamental faz cumprir uma das funções mais importantes do bem jurídico, que é a função garantidora, ou como tratado por Prado (1997, p. 48) “a função de limitar o direito de punir do Estado”. Versa ele ainda sobre o tema expondo que o bem jurídico é erigido como conceito limite da dimensão material da norma penal. O adágio nullum crimen sine injuria resume o compromisso do legislador, mormente em um Estado de Direito democrático e social, em não tipificar senão aquelas condutas graves que lesionem ou coloquem em perigo autênticos bens jurídicos. Esta função, de caráter político-criminal, limita o legislador em sua atividade no momento de produzir normas penais. Não se pode descurar no sentido informador do bem jurídico na construção dos tipos penais.

Essa função torna-se ainda mais essencial quando delineia alguma intenção estatal em editar leis que tenham cunho autoritário, afrontando qualquer chancela que o bem jurídico veio a garantir. Desse mesmo entendimento é a colocação de Tavares (2000, p. 180-181)”[…] a proteção de direitos humanos, como condição de defesa individual frente ao Estado despótico, se apresenta não apenas como um programa, senão como fundamento do próprio Estado democrático, que se deve pois, ocupar de garantir a todos o pleno exercício de seus direitos fundamentais. Isso quer dizer que a legitimidade da atuação estatal, no sentido de um exercício protetivo está vinculada a que sua atuação se faça necessária para impedir a interferência de outrem no exercício de direitos do próprio indivíduo, o que fundamenta a constituição de um direito supletivo desse indivíduo à determinada condição de garantia.”

O poder de legislar do constituinte se funda em manifestações da sociedade acerca de valores que ela considera como fundamentais, podendo variar de acordo com a época, transformações culturais, políticas, sociais, econômicas e o grau de evolução da comunidade. Comprova assim, o caráter dinâmico do direito que anos atrás poderia considerar um bem jurídico como penalmente tutelável e, posteriormente, com o amadurecimento ou a mutação do pensamento do grupo social, essa conduta antes considerada como delitiva, corta o liame da criminalidade e passa a ser penalmente aceitável. Demonstra-se que a atividade do legislador, tutelando determinados bens jurídicos, deve pautar-se nos ideais valorativos que a sociedade contempla naquele momento histórico.

Diante do exposto, espera-se que a atividade punitiva de um Estado de Direito siga os preceitos motivadores de uma Constituição democrática, nunca separando os bens jurídicos dos valores constitucionais. “A lei penal, advirta-se, atua não como limite da liberdade pessoal, mas sim como seu garante” (PRADO, 1997, p. 92). Assim, recorda-se aquele peculiar princípio das ciências criminais, de que o direito penal deve atuar num derradeiro grau de repressão, como última ratio no combate aos delitos.