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Nilson Naves fala sobre as relações entre a imprensa e a Justiça

Ao participar hoje (29) da Conferência Judicial sobre Liberdade de Imprensa, em São Paulo, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Nilson Naves, foi agraciado pelo jornalista Júlio Mesquita, do Estado de S. Paulo, com um exemplar da Carta Interamericana de Imprensa. Nilson Naves foi um dos primeiros signatários da Carta em 2001.

Na oportunidade, Nilson Naves fez uma palestra sobre as “Relações entre a Imprensa e a Justiça no Brasil” abordando as várias fases enfrentadas pela imprensa brasileira até a chegada do Estado Democrático, bem como sobre os diversos aspectos, inclusive os judiciais, decorrentes do exercício da profissão.

A seguir a íntegra da palestra proferida pelo presidente do STJ, ministro Nilson Naves:

RELAÇÕES ENTRE A IMPRENSA E A JUSTIÇA NO BRASIL*

A experiência por que passou o Brasil, não faz muitos anos, de cerceamento da liberdade de informar contém lição que é perigoso desconhecer. Creio que a repulsiva censura à imprensa terminou criando nos meios de comunicação um clima de aversão a tudo que se denomina Poder. Nesse sentido e de modo muito específico, a tudo que se refere à Justiça. E, como fruto desse passado, mostra-se crescente, em nossos dias, a tendência para um diálogo tenso entre a Justiça e a Imprensa, ainda mais quando vêm à tona situações em que esta se vê ameaçada em seus direitos e aquela, em sua competência.

Episódios recentes no Brasil têm mostrado que o Poder Judiciário é um dos alvos preferidos dos jornalistas que buscam escândalos ou matérias sensacionalistas. Esses ainda nos vêem como um Poder fechado, avesso à opinião pública, encastelado, mudo na maioria das vezes. Tal visão, distorcida, não percebe que a Justiça brasileira é uma das mais transparentes do mundo. Os julgamentos, diferentemente do que ocorre em tribunais de nações desenvolvidas como os Estados Unidos, por exemplo, são feitos a portas abertas e seus resultados divulgados pela internet.

A imprensa, no entanto, também tem suas reclamações quanto à atuação da Justiça. Não são poucas as ações de indenização por danos morais que tramitam nos tribunais, algumas com cifras tão milionárias que seria impossível pudesse algum órgão de imprensa pagá-las. Há, porém, uma certa desinformação quanto ao verdadeiro culpado pela chamada indústria das indenizações, que já se instalou em outros países.

“Criar um diálogo e obter um maior entendimento sobre a administração de justiça e o exercício do jornalismo em termos de liberdade de expressão e de imprensa”, objetivo deste ciclo de conferências judiciais promovido pela Sociedade Interamericana de Imprensa, é então um grande passo para a aproximação dessas duas instituições, que têm um compromisso com a verdade e com a cidadania, essenciais à garantia do Estado democrático de direito. Também relevante iniciativa, especialmente porque tal diálogo se instaura num momento em que ameaças terroristas, reais ou alegadas, podem levar alguns governos a tomar medidas defensivas que se choquem com as liberdades individuais e de expressão, fazendo o mundo arcar com o ônus do retrocesso.

A realização de uma conferência dessa natureza no Brasil, país onde agora reina a mais completa liberdade de expressão, é motivo, portanto, para aplauso pela contribuição que pode trazer à defesa do perene objetivo da Sociedade Interamericana de Imprensa: o de lutar pela liberdade de imprensa nos países americanos, que não é outro senão o de lutar pela preservação da democracia.

Ninguém quer retroceder no tempo, àquela época em que a imprensa não só era censurada mas também controlada pelo Estado. Todavia, a fim de que todos possam ser livres para publicar o que quiserem, devem ter em mente que as notícias – mais que simples mercadorias – são a divulgação de fatos que, antes de serem conhecidos do público, reclamam uma pauta comprometida com a verdade. Em outras palavras, além de investigar, o profissional deve apurar os fatos, conferir a veracidade das informações, dar espaço para todos os lados apresentarem suas versões e, só depois, tornar pública a matéria.

Como acredito ser a informação um dos mais poderosos instrumentos da democracia, também acredito existirem parâmetros para nortear o seu uso pelos meios de comunicação. E assim o digo, porque liberdade de expressão não exclui as responsabilidades cíveis e criminais, antes as pressupõe. A propósito, a Constituição brasileira alinha, entre as garantias fundamentais, os seguintes direitos e deveres individuais e coletivos: a liberdade de manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; o acesso à informação e sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; e, sobretudo, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação.

Portanto, a lei maior não só garante mas também estabelece claramente os limites dos direitos e deveres dos meios de informação. Harmonizar, de um lado, a plena liberdade de imprensa e, de outro, as garantias individuais é uma tarefa árdua, mas possível.

Quais são as preocupações do Poder Judiciário em face disso? Uma delas é a de que o jornalismo investigativo, cuja utilidade para o interesse público, a moralidade administrativa e até mesmo a causa da Justiça foi tantas vezes demonstrada, se deixe seduzir pelo “denuncismo”, o que não deveria acontecer jamais.

O ato ilícito, seja nas máquinas administrativas federal, estaduais e municipais, seja no setor privado, e a criminalidade organizada, cada vez mais poderosa e mais bem aparelhada, exigem mecanismo investigador – do Ministério Público e das forças policiais de todos os níveis – muito mais amplo do que a capacidade existente. Nessas condições, a imprensa ocupa lacuna que é de interesse geral ver preenchida.

É preciso evitar, no entanto, que a utilidade da imprensa investigativa seja prejudicada por certas armadilhas em que o jornalista pode cair, das quais a mais séria, na ótica do julgador, ocorre nos casos em que a notícia transcende a apuração e a divulgação dos fatos e invade o terreno do Judiciário, o que, não raro, tem levado a opinião pública a erro e a um juízo equivocado.

Devemos ter em mente que procedimento preparatório, acusação, julgamento e condenação são atos que competem, constitucional e legalmente, ao Poder Judiciário com a valiosa colaboração do Ministério Público e da polícia judiciária. Assim, não é correto que a notícia leve a coletividade a concluir pela culpabilidade do acusado antes do pronunciamento judicial. Não é justo se inverta, na mente das pessoas, a ordem das coisas, e a sentença seja passada antes mesmo da instauração do procedimento preliminar ou preparatório de Ação Penal, a cargo da autoridade policial.

E mais: se os fatos não são levados a julgamento, cria-se a suspeita de que a Justiça faz parte de conluio para acobertar o pretenso crime. Jamais percamos de vista que, entre os direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, encontra-se inscrito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Aliás, o postulado axiológico da presunção de inocência, por ser eterno, universal e imanente, nem precisaria estar gravado em texto normativo. Também é bom lembrar que absolvição não é sinal de impunidade. Muitas vezes, ela decorre da ausência de provas concretas da responsabilidade penal.Infelizmente, o “denuncismo” tem, em alguns casos, condenado inocentes, tem ainda afetado a imagem das instituições e, até mesmo, tem desmoralizado o processo jurídico. Quando isso acontece, o resultado é o descrédito da imprensa, o desserviço ao cidadão e a deturpação da verdade.

Aqui adentramos um outro aspecto do “denuncismo”: o preço da falta de critério, que, sempre, se traduz em indenizações. Em certa ocasião, disse o professor Marcos Cintra: “Ora, como exigir um teto para essas indenizações, se não há limite para ofensas, calúnias e violações da intimidade exercidas pela mídia?”

Nesse ponto, cabe à Justiça coibir os abusos, não permitindo que os meios de comunicação se tornem uma fonte de enriquecimento para os que fazem jus a indenizações por dano material ou moral. Contra isso e diferentemente dos exemplos vindos do exterior relacionados com indenizações milionárias, totalmente desproporcionais ao dano sofrido, a orientação dada pelo Superior Tribunal é a de fixar a reparação a esse título de acordo com as circunstâncias do caso. Recomenda, ainda, que o arbitramento seja feito com moderação. Em verdade, o pagamento de valor considerável é punição suficiente, pois, além de demonstrar o erro, desestimula a publicação de matérias sem fundamento. Nem desejável, nem necessário é que a indenização se transforme num prêmio de loteria, afinal, o objetivo da Justiça é apontar aos meios de comunicação o caminho correto, e não o caminho da falência.

Quando se fala de indenizações, dizem alguns, aos quais não posso unir a minha voz, que a liberdade de imprensa é uma miragem e, por isso, não há lugar seguro para a imprensa no Brasil. Pois eu afirmo: há sim, e esse lugar não é outro senão o espaço demarcado pelo equilíbrio, pelo critério e pela ética. Por assim dizer, não há contradição entre o princípio que proíbe qualquer restrição à liberdade de imprensa e o que protege a privacidade, a intimidade, a honra e a imagem das pessoas; porém, se entrarem em choque, deverá sempre prevalecer o direito do indivíduo à preservação da sua imagem. Diante disso, o que se exige, de fato, é responsabilidade quando da feitura de matérias jornalísticas e discernimento ético que leve em consideração não o interesse do público, mas o interesse público.

Tal responsabilidade e discernimento deverão nortear o trabalho da mídia de modo geral e, com mais razão, do jornalismo que se propõe a investigar, pois, embora útil ao Estado de direito, não pode permitir-se incorrer no “denuncismo” sensacionalista, que a ninguém serve.

Se exponho minhas inquietudes quanto aos obstáculos em que pode tropeçar o jornalismo investigativo é precisamente porque o considero tão relevante, que seria uma perda para a sociedade vê-lo tratado como mera forma institucionalizada de mexerico.

Ao contrário disso, não é outro o papel da imprensa senão o de ser instrumento de informação, influência, convencimento, educação e formação do conhecimento. Para desempenhar missão de tal porte, merece a proteção da Justiça a fim de que trabalhe em benefício da comunidade e para o fortalecimento da cidadania.