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Trata-se da análise dos vários pontos de contato entre o modelo de democracia proposto por Rosseau e alguns aspectos da obra do jusfilósofo alemão Jurgen Habermas

A obra do filósofo alemão Jurgen Habermas é caracterizada por uma singular busca de uma terceira via na disputa entre liberais e comunitários através de um modelo discursivo-procedimental que valoriza ao mesmo tempo direitos fundamentais e soberania popular. Embora este autor ressalte enormemente as distinções com ambas as correntes, podemos encontrar no conjunto dos textos de Jean Jacques Rosseau, o inegável inspirador dos comunitaristas, semelhanças com a elaboração habermasiana só explicáveis pelos desvios naturais que os seguidores da obra de um grande autor fazem na mesma.

Tais similitudes não foram de todo negadas pelo mestre germânico. Num de seus textos mais famosos, Habermas inicia inquirindo que lições as sociedades atuais podem inferir da revolução francesa. Primeiro supõe aquela mais óbvia , que seria a criação do Estado Democrático de Direito, porém logo conclui que esta não é uma conquista exclusiva do modelo francês, sendo adequado também à tradição da Revolução Americana.

O que realmente destaca a experiência francesa é realmente revolucionária na pugnação de uma vontade de agir histórica que rompe com a continuidade tradicionalista numa prática política baseada na autodeterminação e no discurso racional que legitima o poder daí advindo.

Embora tais elementos tenham sofrido o bolor natural do tempo , o último caracter é especialmente relevante para os estudiosos do direito posto que nos permite a busca de uma concepção universalista de justiça consubstanciada, por exemplo, na realização dos direitos humanos.

Isto é uma constância na obra rousseauniana : a capacidade de influenciar os ideais democráticos de uma época, mais recentemente na redemocratização do 3º. Mundo na 2ª. Metade do século XX.

“Toda democracia moderna , por vezes sem o saber, ou malgrado seu, encontrou nO Contrato Social, se não um programa, ao menos um espírito, um método e uma atitude política”

Habermas nos convida a pensar esta herança republicana democrática radical para que desenvolvamos um projeto capaz de superarmos os impasses atuais que ela enfrenta.

Desde já estabelece a premissa deste pensamento, numa vinculação umbilical ao pilar igualdade-liberdade do pensamento rousseauniano :

“O ponto mais interessante desta consideração consiste no vínculo estabelecido entre a razão prática e a vontade soberana, entre direitos humanos e democracia. E, para que a razão legitimadora do poder não se anteponha mais à vontade soberana do povo – como em Locke – , situando os direitos humanos num estado natural fictício, atribui-se uma estrutura racional à própria autonomia da prática da legislação. Uma vez que a vontade unida dos cidadãos só pode se manifestar na forma de leis gerais e abstratas, é forçada per se a uma operação que exclui todos os interesses não generalizáveis, admitindo apenas as normatizações que garantem a todos liberdades iguais. O exercício da soberania popular garante, pois, os direitos humanos” .

Realmente na ordem rousseauniana se destacam a necessidade da igualdade e da liberdade (em oposição à desigualdade e à escravidão).

Esta característica necessita de uma maior explicitação, posto que não há teórico da democracia que negue explicitamente estes dois conceitos. No entanto os conteúdos sempre remetem a preponderância de um dos dois nas teorias clássicas liberais e comunitárias. Em Rosseau, porém, de forma até surpreendente para os não iniciados, há uma total interpenetração de igualdade e liberdade na sua formulação de democracia no que deve ser encarado como uma conseqüência de ser uma obra transicional da política não democrática para aquela democrática, que o obriga a manter juntas a crítica social e a crítica política .

“Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há qualquer compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana… E esta simples condição, sem equivalência, não arrasta a nulidade do ato ?… As palavras escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Seja de homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso será igualmente insensato : Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e em todo meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás enquanto me aprouver”

“Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo o sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais : a liberdade e a igualdade. A liberdade porque toda independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.”

A liberdade em Rosseau é referendada pelo próprio Kant, que interpreta uma passagem do “Contrato Social” muito controversa, aquela em a participação de cada um é exigida, ou seja, quando o bourgeois é instado tornar-se citoyen, não como uma demonstração de brutal autoritarismo, paradoxal ao “princípio da liberdade” inerente ao homem, porém como uma forma de impedir a existência do “outro” dentro da sociedade . Tal como as modernas teorias psicológicas explicam, uma das formas de impedir a violência do agressor contra a vítima é fazê-lo entender-se pertencente de um contexto comum com esta. É fazê-lo vê-la também como ser humano. A maioria que é obrigada a ouvir a minoria começa a entendê-la participante de um destino comum. E cometer uma injustiça contra um “companheiro de caminhada” é muito mais difícil do que contra um “inimigo”.

Não se pense porém que Habermas seja um entusiasta juvenil de Rosseau : são imediatas as restrições aos limites auto-impostos pelo filósofo suíço da virtude cívica dos cidadãos e da necessidade de sociedades pequenas e homogêneas. Tais objeções são refutadas pela crença numa esfera pública, fundada numa cultura política liberal e igualitária que permitem a criação de uma rede de associações capaz de ressonar os problemas sociais e assim deixar o poder comunicativo ser “exercido à maneira de um assédio, sem intenções de conquista”, mas sim de fazer “valer seus imperativos [de racionalidade] sobre as premissas dos processos de juízo e decisão.” .

Porém pode ser feita uma leitura do “Contrato Social”que revele o seu caráter eminentemente contrafático :

“Rigorosamente falando , nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá.”

Este é um ponto essencial na leitura de Rousseau, explicando a diferença de prescrição sentida na comparação entre o “Contrato Social” e obras como “Considerações sobre o governo da Polônia” e “Projeto para a Constituição da Córsega” : numa terminologia argumentativa à lá Chaim Perelman , o filósofo suíço transitava entre obras de convencimento de um auditório universal e outras que visavam a conquista de um auditório particular. Luiz Vicente Vieira argumenta tal posicionamento :

“É importante sublinharmos um aspecto essencial do projeto político de Rousseau, evidenciado no papel do Contrato Social, dentro do conjunto de sua obra. Ao apresentá-lo com o subtítulo de “Princípios de Direito Político” o autor visa, neste escrito, estabelecer um modelo de sociedade , possível de ser elaborado pelo método hipotético-dedutivo, objetivando determinar os parâmetros que devem ser considerados na reflexão e na prática política de quem se propõe à participação no trabalho de construção de uma sociedade alicerçada nos princípios de liberdade e igualdade. Trata-se, portanto de um modelo ideal que nos permite julgar até que ponto uma determinada sociedade aproxima-se ou distancia-se de uma verdadeira comunidade política. É de fundamental importância ressaltar este caráter da referida obra rousseauniana, haja visto que em outros trabalhos, onde o autor analisa a conjuntura de alguns Países com a Polônia e a Córsega,etc. , usará o contrato social unicamente com este referencial, sem cair na ingenuidade de desconsiderar a realidade política e cultural de cada comunidade” (p. 90).

Também o perigo da tirania da maioria, célebre crítica liberal, sofre uma releitura habermasiana : apoiando-se em Frobel ressalta a importância de uma deliberação orientada para a verdade para a tomada de decisão, única forma da minoria poder aceitar na prática comunicativa efetuada uma posição contrária aos seus interesses. Assim os direitos humanos são ceifados de tudo que possua uma natureza meramente substancial, para se identificar com as liberdades advindas dos direitos gerais de participação e comunicação. É interessante ainda notar que esta cidadania pede altas doses de educação para o povo, tal como propõe Rosseau no seu “Emílio”. Isto, numa leitura atual, deve ser entendido com uma “cultura política (…) de uma população acostumada com a liberdade política : não pode haver formação política racional da vontade sem a contrapartida de um mundo da vida racionalizado” .

Todos esses elementos são surpreendentemente encontrados em Rosseau. É primeiro importante ressaltar que a vontade geral não se confunde com o interesse coletivo , mas sim com uma espécie de “conteúdo geral compartilhado”. É a individualidade “geral” e não várias individualidades singulares agrupadas (ou seja, o interesse da maioria) : “o que generaliza a vontade é menos o número de votos do que o interesse comum que os une” .

As minorias são expressamente defendidas tanto nos limites a legislação, “só o soberano pode ser juiz deste interesse [ do que presta à sociedade ] …; mas , de seu lado, o soberano não tem direito de sobrecarregar os vassalos de nenhum grilhão inútil à sociedade” sempre “não onerando um cidadão mais do que o outro” , quanto na busca incessante pela igualdade substancial.

A igualdade de Rousseau , realmente, não é aquela formal dos liberais. Relaciona-se mais com a tentativa de evitar uma sociedade de classes. Assim as diferenças de riqueza são indesejadas, não obstante se aceite as de mérito, assim entendido como o trabalho efetivo pró-comunidade.

“O Pacto fundamental, ao invés de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade física que a Natureza pode por entre os homens fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais por convenção e por direito.” .

No plano da igualdade esta potencialização passa por garantir a todos os indivíduos “iguais oportunidades” :

“O Pacto Social estabelece tal igualdade entre os cidadãos que os coloca todos sob as mesmas condições e faz com que todos usufruam dos mesmos direitos.”

Podemos, inclusive, fazer uma interpretação que sugere ecos do “véu de ignorância” de John Rawls : “Assim para Rosseau, na mesma linha de Espinosa, o Estado será livre quando ninguém possa se identificar ou se apropriar do poder, por ser este de todos, não havendo um lugar pré-determinado que só possa ser ocupado por alguns e não por todos.”

Embora o ideal democrático radical seja na sua pureza negado sempre pelas práticas de “colonização do mundo da vida” esferas administrativas e econômicas , a empresa habermasiana é de mostrar que a esfera pública já possui uma influência nada insignificante na tomada de decisão e pode ser amplificada neste pensar para frente numa constante democratização dos processos de formação de opinião e vontade :

“Com um pouco de fantasia institucional , encontraríamos maneiras de complementar as corporações parlamentares existentes, submetendo-as a instituições com poder para obrigar o judiciário e o executivo a se legitimarem de um modo mais eficaz, perante a esfera pública jurídica e a clientela atingida.”

A busca de uma nova arquitetura se encontra em Rosseau no seu compromisso de uma “instância democrática verdadeiramente universal” que busca a “potencialização social do indivíduo” . Só desta forma eliminaria o perigo sempre presente da multidão ser guiada pelos partidarismos e pelos aproveitadores invés da “vontade geral” como deveria ser o seu destino.

Este “dever ser” universal em Rousseau portanto igualmente apresenta-se com um caráter minimamente substancial e eminentemente procedimental.

O Estado então passa a ser este local de exercício do “pactum societatis”, ou seja, da soberania do povo, e não mais entidade externa que visa à preservação de interesses particulares (como exposto no “discurso da desigualdade”).

Tal objetivo ambicioso só é alcançado como resultado de uma determinada forma de associação dos indivíduos, de uma determinada ordem : a democracia.

Via Rosseau os males do processo de participação ( a já citada possibilidade de “colonização do mundo da vida”) : “Jamais se corrompe o povo, mas freqüentemente o enganam e só então é que ele parece desejar o que é mal.” .

“De que maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer , porque raramente conhece o que lhe convém, executará por si mesma um empreendimento de tal importância e tão difícil como um sistema de legislação ? O povo, de si mesmo, sempre deseja o bem; mas nem sempre o vê, de si mesmo. A vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a dirige nem sempre é esclarecido” .

Não obstante, há solução : “para Rosseau, o objetivo das assembléias não está tanto em nelas manter a vontade geral, mas em fazer com que ela sempre seja consultada e respondida (C.S., III, 438). Sendo a vontade geral a essência da soberania, está implícito que tanto menos permanecerá muda e mais vigorosamente se manifestará , quanto mais for contínuo o seu exercício , através da participação do cidadão nas deliberações coletivas, bem como na fiscalização do cumprimento das mesmas” . Portanto, em Rosseau, menos que a decisão a deliberação das Assembléias é o ponto central.

“Não basta que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição do Estado, sancionando um corpo de leis; não basta que tenha constituído um governo perpétuo, ou provido de uma vez por todas a eleição dos magistrados. Além das assembléias extraordinárias, que casos imprevistos podem exigir, é necessário havê-las fixas e periódicas que não possam ser abolidas nem adiadas, a fim de que, em dia marcado, seja o povo legitimamente convocado pela lei, sem que se faça preciso para tanto nenhuma outra convocação formal.”

A abertura total da intervenção do cidadão na esfera política , de uma forma muito mais ampla que a da simples participação política nas democracias representativas, tornando o poder um local aberto é o que se propõe aqui .

O consenso (“admirável acordo de interesse e da justiça que fornece às deliberações comuns um caráter eqüitativo” ) que dá voz a vontade geral latente depende diretamente da contínua aferição da concordância com as políticas apresentadas. Os atos governamentais devem estar sob um “princípio da publicidade” eterno e automático.

“Assim sendo, a lei da ordem pública nas assembléias não consiste quase em manter a vontade geral, mas fazer com que esta seja interrogada e sempre responda.Eu teria nesta altura muitas reflexões a fazer sobre o simples direito de votar em todo o ato de soberania, direito que ninguém pode subtrair ao cidadão, e sobre o direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo, com grande cuidado, sempre procura reservar apenas a seus membros, mas esta importante matéria demandaria um tratado à parte, e eu neste não posso dizer tudo”

Por último sublinhe-se que na empreitada teórica dos dois autores a comunicação então tem relevo indelével. Esta já se destaca no “Discurso sobre a desigualdade” em que a passagem do estado de natureza para o estado civil corresponde à passagem de um estado de não-linguagem para um estado de linguagem. A emergência da linguagem e a superação da animalidade são processos profundamente inter-relacionados. A racionalidade que nos permite descobrir as leis naturais só existe quando se forma tal sociedade civil possibilitada pelo advento da palavra. A sociabilidade decorrente das línguas nos permite diferenciarmos dos animais selvagens e a razão advinda do debate nos livra dos “ferros” da opressão.

Portanto também em Jean Jacques Rosseau encontramos uma “teoria do agir comunicativo”, muito menos elaborada, inclusive devido ao manancial teórico disponível à época, porém idêntica em inúmeros pressupostos e incrivelmente fresca para um obra que supera os 200 anos.