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Presidente do STJ diz que lei ainda é pouco aplicada para combater a tortura

Em três anos de vigência da lei que tipifica o crime de tortura (nº 9.455), não houve, até agora, nenhum caso de condenação de torturador julgado em última instância, mas a tortura e os maus-tratos ainda são práticas comuns nas penitenciárias e cadeias públicas brasileiras e mesmo em vários segmentos da sociedade. “A verdade é que a maioria dos casos de tortura sequer chega ao Judiciário”, constatou o presidente do STJ, ministro Paulo Costa Leite, na abertura do Seminário Nacional sobre a Eficácia da Lei de Tortura.

O seminário reunirá hoje e amanhã (1º/12) durante dois dias defensores e especialistas de direitos humanos. O encontro foi aberto com a presença do vice-presidente do STJ, ministro Nilson Naves, do coordenador do Conselho da Justiça Federal, ministro Hélio Mosimann, do senador Pedro Simon (PMDB-RS) e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Marcos Rolim (PT-RS). A finalidade é discutir as formas eficazes de “extirpar a mais odiosa de todas as práticas de degradação humana”, segundo a definição do ministro Costa Leite. Ele disse que, apesar dos avanços no campo dos direitos civis e políticos, entre eles a reconquista da liberdade de expressão, a “preocupante deterioração dos direitos econômicos e sociais” compromete os direitos humanos. “Fica difícil conceber um verdadeiro Estado democrático de direito em um país onde apenas 10% da população detém a maior parcela da renda nacional e onde imperam a miséria e o analfabetismo”, observou.

Como já constataram estudos das organizações não-governamentais, os mais pobres – trabalhadores braçais, urbanos e rurais, muitos dos quais negros – são os alvos mais propensos aos castigos físicos. O presidente do STJ citou uma denúncia feita à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ma “senhora da alta sociedade do Rio, promotora de festas beneficentes, que estimulou policiais a tortura sua empregada doméstica para confessar o furto de uma jóia”.

Em relação à tortura institucional, principalmente como instrumento de investigação, o presidente do STJ disse que ela decorre, em grande parte, da falta de investimento na área da investigação criminal científica, o que torna urgente a modernização do aparato de segurança. “Não raro, (os torturadores) são remunerados pelos cofres públicos e apresentam-se travestidos de defensores da lei e da ordem”, afirmou.

Segue a íntegra da palestra do Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Paulo Costa Leite

TORTURA, ATÉ QUANDO?

Na história universal, a tortura sempre esteve presente em todos os momentos; é a própria história do homem, dos direitos humanos, do Direito Penal e do Direito Penitenciário. Mas não deixa de causar perplexidade o fato de que, às vésperas de um novo milênio, com todos os avanços políticos e sociais conquistados, continue sendo este um assunto dos dias atuais em nosso País.

Neste século, os agentes sanitários conseguiram erradicar agressores invisíveis – bactérias, fungos e vírus. Talvez o Brasil esteja precisando de uma profilaxia semelhante para extirpar a mais odiosa de todas as práticas de degradação humana – a tortura.

A diferença entre os dois males é que os agentes transmissores da tortura podem ser vistos a olho nu; conversam conosco, freqüentam nossas escolas e igrejas, teatros e restaurantes. Não raro, são remunerados pelos cofres públicos e apresentam-se travestidos de defensores da lei e da ordem.

Em termos gerais, é verdade, têm ocorrido significativos avanços no campo dos direitos civis e políticos, com a conquista ou a reconquista das liberdades clássicas, liberdade de expressão, liberdade de associação e outros. Contudo há uma enorme distância entre tais avanços institucionais e a prática real. Vale dizer, verifica-se hoje uma preocupante deterioração dos direitos econômicos e sociais, com reflexos nos direitos humanos.

Fica difícil conceber um verdadeiro Estado democrático de direito em um país onde apenas 10% da população detém a maior parcela da renda nacional; onde imperam a miséria e o analfabetismo; onde a polícia é violenta e mata com a benevolência de um sistema que acaba estimulando a impunidade; onde os pobres ainda não têm pleno acesso à Justiça. Enfim, um país onde os cárceres não cumprem seu papel de recuperar seres humanos e devolvê-los ao convívio social. Pelo contrário, são escolas de aperfeiçoamento do crime ou a porta de entrada para o inferno, diante da qual os condenados são obrigados a jogar fora todas as esperanças, como “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e seu inferno imaginário. Só que nossos infernos são bem reais.

É notório que a tortura e os maus-tratos são comuns nas penitenciárias e cadeias públicas brasileiras. Torturas e maus-tratos seguidos de mortes que nem sempre são documentadas, muito menos investigadas, e que atingem não só adultos, mas adolescentes e até mesmo crianças.

Segundo se tem notícia, esquadrões da morte agem, em muitos casos, associados à polícia, financiados por setores da sociedade que ainda carregam a herança colonialista de fazer justiça com as próprias mãos – o que, na verdade, não passa de assassinato, vil e covarde.

É estarrecedor o relato colhido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sobre uma senhora da alta sociedade do Rio, promotora de festas beneficentes, que estimulou policiais a torturar sua empregada doméstica para confessar o furto de uma jóia.

Casos como esse podem ser analisados, sob o ponto de vista sociológico, como legado de um Brasil escravagista, onde a tortura era utilizada para obter provas mediante a confissão. Voltando no tempo, podem também ser vistos como herança da Inquisição.

Estudos realizados por Organizações Não-Governamentais dignas de crédito revelam que os castigos físicos costumam ser reservados às pessoas situadas na base da pirâmide social. Ou seja, os mais pobres. Cumpre registrar que, se ontem os desamparados eram, em sua maioria, escravos negros, hoje as vítimas são trabalhadores braçais, urbanos e rurais, muitos dos quais negros. A maioria sem ao menos educação fundamental.

A tortura foi aplicada nos 322 anos de Colônia, nos 67 de Império e continua sendo em 111 anos de República. Quantos Tomás de Torquemada teremos ainda de tolerar em nossa época?

Em setembro deste ano, segundo relata a Anistia Internacional, promotores de justiça fizeram uma visita surpresa à Delegacia de Roubos e Furtos de Belo Horizonte e descobriram vários instrumentos de tortura – incluindo aparelhos de choque elétrico e uma trave de metal para suspender as vítimas, mais conhecida como pau-de-arara. Os promotores que tentaram entrevistar os prisioneiros sofreram ameaças dos policiais e tiveram seus carros vandalizados.

Nesse ponto, cabe uma reflexão. É interessante observar que a prática da tortura como instrumento de investigação decorre, em grande parte, da falta de investimento na área da investigação criminal científica. Urge modernizar o aparato de segurança. O Brasil não pode continuar nos tempos de Torquemada quanto ao trato de pessoas submetidas à custódia do Estado.

Mais grave: tudo isso acontece mesmo sendo o Brasil signatário das convenções e tratados internacionais contra a tortura e tendo incorporado em seu ordenamento jurídico uma lei tipificando o crime de tortura. Em três anos de vigência dessa lei, não se conhece nenhum caso de condenação de torturadores julgado em última instância.

Os princípios da defesa dos direitos humanos atualmente em vigor no nosso ordenamento jurídico são de elaboração recente, incorporados num momento de retomada da ordem democrática.

O Brasil aderiu, voluntariamente, à maioria – se não a todos – dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos relativos à tortura, destacando-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Não podemos esquecer que o projeto de resolução para se criar uma Comissão Permanente de Direitos Humanos foi por duas vezes arquivado pela Mesa da Câmara, em 1987 e 1991. E só muito recentemente o Executivo passou a contar com organismos específicos de defesa e promoção dos direitos humanos.Essas são as razões de estarmos aqui discutindo. Ou, melhor, buscando respostas. Por quê?

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